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"Ultrapassa-te a ti mesmo a cada dia, a cada instante. Não por vaidade, mas para corresponderes à obrigação sagrada de contribuir sempre mais e sempre melhor, para a construção do Mundo. Mais importante que escutar as palavras é adivinhar as angústias, sondar o mistério, escutar o silêncio. Feliz de quem entende que é preciso mudar muito para ser sempre o mesmo".

Dom Helder Câmara


segunda-feira, 17 de julho de 2017

O PAÍS DAS ALMAS - Dr. Napoleão Tavares Neves.

“O Saco é o país das almas. Lá todo mundo vê alma”, Napoleão explica antes de contar a mais estranha de todas as histórias que ele presenciou,.

“A única vez que eu vi darem uma surra num defunto foi lá”. O fato aconteceu enquanto ele acompanhava o carregamento do corpo de um homem que morreu empurrando lenha no talhado do engenho. “Eles vinham descendo com o defunto em uma rede, até que um deles reclamou: ‘o defunto tá pesando’. Aí o mais sabido gritou: ‘Para, para, para! Isso é porque o diabo não quer que a gente leve ele pra igreja. Aí se escancha em cima da rede e faz pesar’. Eu fiquei todo arrepiado quando ele disse isso. Depois entrou no mato, tirou um galho de pau e deu uma pisa no morto. Enquanto ele dava, os outros descansaram”, contou. Quando testaram o efeito da surra, alguém elogiou: “Ah, agora tá manêro”.

Aos 12 anos, acompanhando o aboio de 200 reses de uma fazenda a outra, Napoleão viu outro acontecimento, no mínimo mágico, digno de passagem em livro de Guimarães Rosa. A caravana se deparou com a caveira de um boi morto na estrada e, em vez de seguir caminho, todas os bois se puseram em torno do corpo do bicho e choraram. “Uma coisa que eu nunca vi na minha vida. A coisa mais linda. Os bois cavando em torno do irmão e urrando. Todo o gado, sem faltar um. Os vaqueiros então tiraram o chapéu, puseram no peito e baixaram a cabeça”. Maravilhado com o Cariri, o menino Napoleão começou a desconfiar que havia muita história a ser contada. Ele então adquiriu os hábitos que definiram sua personalidade e serviram para resgatar memórias dos caririenses: ele aprendeu a perguntar e a ouvir. Em sua biblioteca, uma estante que vai do chão ao teto guarda quase duas mil crônicas que já foram lidas em rádios de Barbalha e Crato, contando o que ele escutou ou viu em seus 86 anos de vida.

Se Napoleão não conseguia dormir, amedrontado pelos cangaceiros, não haveria como fugir: a sua avó materna, Ana Pereira Neves, a Donana, foi madrinha de Luiz Padre, o famoso cangaceiro de Serra Talhada. Para completar, o Saco era passagem de quem ia para Juazeiro do Norte através da Chapada. O caminho de Lampião no Cariri era sempre o mesmo: ele entrava por Macapá (atual Jati), ia direto para a Fazenda Piçarra (onde morava o amigo Antônio Teixeira Leite), subia a serra pela Ladeira da Salva Terra (entre Brejo Santo e Porteiras, onde Napoleão morava), até chegar na Serra do Mato (entre Barbalha e Missão Velha). Para entender a peregrinação do rei do cangaço e seus cabras, Napoleão recorria ao mapa sempre que ouvia as histórias da avó.

“Donana me contava muita coisa e eu fui gravando tudo na cabeça”, recorda. Devota do Padre Cícero, ela se comunicava com o sacerdote por cartas. Uma correspondência em particular, Napoleão se recorda. Donana escreveu se lamentando: “Meu padrim, não posso subir ladeira, que me sinto cansada”. Ao que Cícero respondeu: “Isso é anemia. Vá em Porteiras e compre ferro em pó”. O doutor pondera: “Ele era muito prático, muito inteligente – pra a época e pra onde vivíamos”.

A terra encantada do Saco, em Porteiras, onde Napoleão viveu a infância.

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