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"Ultrapassa-te a ti mesmo a cada dia, a cada instante. Não por vaidade, mas para corresponderes à obrigação sagrada de contribuir sempre mais e sempre melhor, para a construção do Mundo. Mais importante que escutar as palavras é adivinhar as angústias, sondar o mistério, escutar o silêncio. Feliz de quem entende que é preciso mudar muito para ser sempre o mesmo".

Dom Helder Câmara


sábado, 6 de maio de 2017

A Pedra da Batateira vai rolar -- por Ronaldo Correia de Brito (*)


Dizem os mais velhos que se a Pedra da Batateira rolar, a cidade cearense do Crato se afoga nas águas de um oceano submerso. Existem várias lendas iguais a essa, algumas herdadas dos índios cariris, os primitivos habitantes da região, massacrados como os demais índios brasileiros. O Crato, que possui o mesmo nome de uma cidade portuguesa, fica em meio à chapada do Araripe, um milagre de floresta atlântica e nascentes d’água no deserto cearense.

Os lugares onde ficam o Crato e as outras cidades em volta da chapada – o cariri cearense – eram parte de um grande oceano no período cretáceo, há vários milhões de ano. Em Santana, uma cidade da região, existe a maior reserva fóssil do planeta. À medida que o antigo oceano secava, camadas de calcário se depositavam sobre peixes, animais e plantas, fossilizando-os. Ao caminhar na serra, você pisa sobre seres embalsamados em pedras, criminosamente roubados e vendidos para o mundo.

As nascentes d’água de Crato e Barbalha já foram numerosas e abundantes. Muitas desapareceram por conta de desmatamentos, incêndios e manuseio inadequado do solo. Algumas abastecem clubes e parques, todos de péssimo gosto estético, como o de Arajara, onde trocaram a mata, as árvores frutíferas, as pedras e as grutas por réplicas de monstros de plástico e amianto, imitações grosseiras da Disney americana, que destoam da exuberante natureza em volta. Na maioria das nascentes, a vazão de água caiu em mais de cinqüenta por cento. A previsão é de que elas sequem num futuro próximo.

Os dois rios mais importantes do Crato se chamam Batateira e Granjeiro. Já não são perenes, mas bem antigamente corriam o ano inteiro, abastecidos pelas nascentes que ainda não tinham donos. No passado, os rios se integravam à vida da cidade, atravessavam as ruas, contornavam a zona urbana e eram lugar de banhos e passeios. Da mesma maneira que o Tietê de São Paulo, tentaram domar o Batateira e o Granjeiro botando-os para correr dentro de canais. Despejam esgotos nos valados, que mais parecem latrinas e criadouros de mosquitos.

A infância de minha avó, minha mãe e minha própria infância foi marcada por esses rios. O Granjeiro passava a poucos metros de nossa casa e não há lembrança mais grata do que acordar à noite ouvindo o barulho das enchentes, as pedras rolando mundo abaixo, arrastadas pelas águas. As margens dos rios eram contornadas de árvores, arbustos e moitas, onde os meninos se escondiam para ver as mulheres tomar banho. Igualzinho ao poema de Manuel Bandeira, Evocação do Recife: Um dia eu vi uma moça nuinha no banho / fiquei parado, o coração batendo. O rio Granjeiro não era grande como o rio Capibaribe de Bandeira, mas eu o amava e brincava nele como se fosse a extensão de minha casa.

As cheias me davam alegria, nunca esqueci o cheiro e o som das águas. Mas os rios tornaram-se bonzinhos, domesticados, nem se vingam para valer de quem os mata. As pessoas esqueceram a lenda dos índios cariris, sobre a Pedra da Batateira, essa que nunca se viu, mas existe lá no pé da serra, junto à nascente da Luanda. Um dia ela vai rolar, liberando as águas submersas do oceano cretáceo, engolindo o Crato e o Cariri inteiro. Voltaremos a ser mar, como nas profecias do Conselheiro. E peixes, animais e plantas fossilizados acordarão de um sono de milhões de anos.

(*) Ronaldo Correia de Brito é escritor. Nascido em Saboeiro, viveu até a adolescência em Crato.

Um comentário:

  1. Outro dia o Pedro Esmeraldo dizia na Praça Siqueira Campos que pouco importava se a pedra da Batateira rolasse, desde que levasse Juazeiro com ela.

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