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"Ultrapassa-te a ti mesmo a cada dia, a cada instante. Não por vaidade, mas para corresponderes à obrigação sagrada de contribuir sempre mais e sempre melhor, para a construção do Mundo. Mais importante que escutar as palavras é adivinhar as angústias, sondar o mistério, escutar o silêncio. Feliz de quem entende que é preciso mudar muito para ser sempre o mesmo".

Dom Helder Câmara


quarta-feira, 13 de março de 2024

De primo para primo, uma crônica memorável - Postagem do Antonio Morais.

Jorge Siebra. 

O nosso carro ia rasgando o coração da noite na estrada sinuosa de Crato a Várzea Alegre.

O terreno, sempre acidentado, era atingido, em morros e recôncavos, pelo branco pincel da lua que, furando as nuvens, desenhava, na mata, labirintos de sombra e de luz.

Apenas quebrava o silêncio o estralejar da piçarra sacudida pelas rodas do automóvel.

O passar veloz das árvores e a fita branca da estrada a sumir-se, em nossa frente, na multiplicidade das suas curvas, traziam-me a mente a ideia da vida em seus três tempos, presente, passado e futuro.

O passado então dominou-me completamente, afogando-me num mergulho profundo.

E, entre os fatos de cada dia e de todos os instantes, eu vi, bem coloridos, os da existência daquele que, em tal momento, nos atraía, não para o convívio amigo de outrora, mas para um encontro cheio de pranto.

Eu via aquele Jorge Siebra da minha infância, cercado da garotada, nos prateados terreiros da Malhada, em noites de lua cheia, a todos divertindo com as suas palestras plenas de graça e de emoções.

O seu entusiasmo era contagiante, viva e ardente a sua imaginação, boa e jovial a sua alma, abnegado e desprendido o seu coração.

Esperava-se a sua chegada com ansiedade. A sua presença era estimada, a sua partida assistida com tristeza e a sua ausência era sentida com saudade.

Eu via aquele Jorge Siebra diariamente, na sala de sua farmácia, atendendo dezenas de matutos, recebendo-os com palavras de convívio e de conforto.

Eu via-o montado em sua burra carda, vencendo as distâncias, atravessando os tabuleiros, galgando íngremes ladeiras, sofrendo fome e sede, para salvar a vida dos desamparados, para curar os meninos desvalidos, para consolar os necessitados.

Eu via-o dominando as trevas e os caminhos da serra para ajudar a vir à luz as criancinhas, onde não podia chegar o médico nem a mão abençoada da parteira.

Eu via-o arrancando do bolso muitas vezes seus últimos tostões, ganhos com suor e sacrifício, para fazer caridade.

Eu via-o cercado de pobreza, sua maior amiga, em toda aquela zona sertaneja, a todos fazendo benefício.

Eu via-o enfrentando a sanha dos seus inimigos, indomável e intrépido, desafiando a fúria dos seus perseguidores, galopando sozinho por sombrios e perigosos caminhos.

Eu via-o indomável pelo sofrimento, sempre o mesmo homem, em todos os lugares e em todos os dias, amante dos pobres e bom pai de família.

E perdido nestas divagações, vejo ao longe uma luz que anuncia a nossa aproximação de Várzea Alegre.

A noite já ia na segunda metade e a cidade toda dormia.

Apenas aquela casa estava aberta e quatro velas bruxuleantes mostram estendido ali na sala, imóvel e sem vida, o corpo de Jorge Siebra.

Aquele bom amigo estava sem a sua vivacidade.

As feridas dos presentes se reabriram e os soluços e as lágrimas se multiplicaram.

Fitando-o senti que se havia feito um grande vazio no sertão e que tamanha dor brotara na pobreza daquela região.

Quantos casos resolveu com os seus poucos conhecimentos e quantas vidas salvou.

Como não teria sido muito mais avantajada a soma de benefícios se tivesse podido fazer o curso de medicina.

Infelizmente aqueles que tem verdadeira vocação para medicina são quase todos pobres e sempre gente dos sertões.

Jorge foi um dos muitos sacrificados que surgem por este Brasil afora, abnegados, inteligentes e perscrutadores, que, como médicos, muito fariam pelo povo, mas que vivem e morrem sem estudo somente porque os nossos governos jamais facilitaram meios aos filhos dos sertões.

Apesar de tudo, foi o médico da região, sempre procurado, sempre estimado, sempre respeitado.

A sua vida está gravada no coração do matuto e a sua imagem ficou entronizada na alma de todo sertanejo daquela região, num rico pedestal de reconhecimento e de saudade.

O seu nome será sempre pronunciado onde houver um casebre ou uma casa grande, naquela zona.

Assisti ao seu sepultamento em meio de grande povo e, logo depois, despedindo-me dos seus filhos e das suas irmãs ainda em pranto, voltei pensando no quanto pode a medicina quando em mãos de um homem de boa vontade, que sacrifica até a sua vida pela saúde do povo, no quanto pode realizar um médico, verdadeiro sacerdote de tão nobre e bela profissão.

Olhando para trás, Várzea Alegre havia desaparecido na volta do caminho e eu segui trazendo a saudade daquele que tantas vezes alegrou os dias da minha infância.

Crato-CE, março de 1955

José Siebra. 

Um comentário:

  1. Jorge Siebra no seu cavalo a percorrer os sítios, fazendas e logradouros de Várzea-Alegre levando os seus conhecimentos e pendores de farmacêutico a população carente. A crõnica do José Siebra é memorável. Cultura e literatura de mãos dadas.

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