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"Ultrapassa-te a ti mesmo a cada dia, a cada instante. Não por vaidade, mas para corresponderes à obrigação sagrada de contribuir sempre mais e sempre melhor, para a construção do Mundo. Mais importante que escutar as palavras é adivinhar as angústias, sondar o mistério, escutar o silêncio. Feliz de quem entende que é preciso mudar muito para ser sempre o mesmo".

Dom Helder Câmara


sábado, 25 de novembro de 2017

O Crato em 1915 -- por Armando Lopes Rafael

Às vezes, os historiadores e memorialistas deixam de registrar fatos que foram importantes para a vida de uma comunidade. Na crônica abaixo -- publicada há quase três  anos, ou seja em 1º de janeiro de 2015 -- temos um exemplo prático do que deixou de ser registrado nos anais da Heráldica Cidade de Crato

   "Bons tempos, aqueles de 1915 – há cem anos – nesta Mui Nobre e Heráldica Cidade de Frei Carlos Maria de Ferrara! A julgar pelo que ficou registrado para a história (e louve-se a preservação dos fatos feita pelo historiador Irineu Pinheiro através do seu livro “Efemérides do Cariri”) o Ano da Graça de 1915 não teve nenhum acontecimento digno de registro na então mais do que centenária Freguesia de Nossa Senhora da Penha de França.

   Para não deixar passar totalmente em branco, Irineu Pinheiro registrou apenas duas anotações – para lembrar 1915 – na sua famosa obra memorialística. Ambas no mês de junho. E, mesmo assim, essas duas efemérides se restringem a dois telegramas expedidos pelo Padre Cícero, a partir da cidade de Juazeiro. Noutras palavras: nem do Crato partiram as duas mensagens telegráficas preservadas para assinalar 1915 por Irineu Pinheiro. Fico matutando o que teria levado o nosso historiador maior a ser tão avaro para os fatos municipais de 1915...


  Sabemos, no entanto, que outros acontecimentos regionais ocorreram, naquele ano, causadores de grande repercussão na vida da pacata população cratense de então. Para começar, 1915 registrou uma das piores secas da história do Nordeste brasileiro, forçando a emigração de milhares de cearenses para escapar da fome. Naquele ano, o prefeito de Crato era o coronel Teodorico Teles de Quental, respeitado pela sua autoridade e honestidade. Ele certamente teve de ajudar a muitos pedintes que se postavam em frente à Intendência (era assim que se chamava a Prefeitura naquela época), localizada na Praça da Sé, onde hoje funciona (ou funcionou?) o Museu de Arte (na parte superior) e o Museu Histórico (parte inferior) do vetusto edifício.

    Teodorico Teles foi o construtor da Praça Siqueira Campos, na sua primeira versão. Para fazê-la, mandou derrubar a primitiva capela de São Vicente Ferrer, causando pesar a muitos católicos cratenses que choraram com a demolição do humilde templo. Deve-se a ele também a construção dos primeiros calçamentos das ruas centrais da cidade e o estudo para implantar a luz elétrica em Crato, cuja caldeira – no dizer de Lindemberg de Aquino –, foi transportada por possantes bois, muitos dos quais morreram nessa travessia, inclusive 12 touros que pertenciam ao genro do prefeito, o agropecuarista Sr. Cícero Pinheiro.

    Outros eventos de importância também aconteceram naquele ano, nesta cidade. Na área religiosa, por exemplo, depois da criação da segunda diocese do Ceará, vamos encontrar nos escritos de J. Lindemberg de Aquino – mais precisamente no seu livro “Roteiro Biográfico das Ruas de Crato” – que “A 10 de março de 1915 (Dom Quintino Rodrigues de Oliveira e Silva) foi preconizado primeiro Bispo de Crato, sendo, aliás, essa nomeação a primeira feita pelo (novo) Papa Bento XV”. Ainda sobre Dom Quintino, Lindemberg registra que “Ocorreria a 31 de outubro de 1915 a solenidade de sua sagração, na cidade de Salvador, Bahia”. Bem já encontramos outros fatos relevantes para a memória histórica desta comunidade, fora os parcos registros de Irineu Pinheiro.

  É crível supor que a imensa maioria da população cratense, em 1915, sequer sabia o nome do Presidente de plantão dos  "Estados Unidos do Brazil" (este o nome e a grafia oficial do nosso país, mudado após o golpe militar que enfiou, goela abaixo, dos brasileiros a nova forma de governo republicana). Havia apenas 25 anos Deodoro e seus generais  tinham derrubado a Monarquia (que vinha de ano 1500, ou seja desde a descoberta)  e rasgado a Constituição do Império, que durara 67 anos sem ter nunca sido violada pelos nossos dois imperadores. Todos os cratenses, daquele tempo, sabiam de cor e salteado,  que durante 67 anos apenas dois imperadores tinham reinado no Brasil: Pedro I e Pedro II. Mas, em 1915, apenas 25 anos depois do golpe republicano, o Brasil já estava sendo governado pelo seu 9º (nono) Presidente da República, o que dá uma média de 2 anos e 5 meses por mandato presidencial. Tínhamos retroagido ao status de  uma banana-republic.Haja esculhambação!
   
    E dentre esses nove presidentes, estão incluídos dois ditadores, exatamente os dois primeiros que exerceram esse cargo na nova res pública. Para matar a curiosidade do leitor informo: o presidente do Brasil em 1915 era Wensceslau Braz, um mineiro escolhido para concorrer ao posto pelas elites de São Paulo e Minas Gerais, os dois estados que dominaram por muito tempo o rodízio da Presidência, dentro do famoso esquema eleitoral do “café-com-leite”, destinado à manutenção do poder republicano. Wenceslau obteve 532.107 votos contra 47.782 votos dados ao candidato da oposição, o jurista baiano Rui Barbosa. O café-com-leite, dos paulistas e mineiros, representava, naqueles tempos, o que hoje se chama eufemisticamente de “base de sustentação do governo”. Esta todos nós sofremos as consequências.

    Faz cem anos hoje que teve início 1915, um ano de muita movimentação na antiga Vila Real do Crato, embora Irineu Pinheiro não tenha atentado para tantos fatos, como os que narrei acima. Quem sabe se 2015, também não venha com esse jeitão de pouca importância e termine sendo um ano de prufundas modificações no cenário sócio-econômico nacional, com sérios reflexos no município de Crato? Boas modificações , diga-se de passagem. Afinal, a única certeza da vida é o imprevisível... A Mãe do Belo Amor -- primeira devoção mariana desta Mui Nobre e Heráldica Cidade de Frei Carlos Maria de Ferrara -- nos ajude para que esses augúrios se tornem  realidade. Amém."

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