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"Ultrapassa-te a ti mesmo a cada dia, a cada instante. Não por vaidade, mas para corresponderes à obrigação sagrada de contribuir sempre mais e sempre melhor, para a construção do Mundo. Mais importante que escutar as palavras é adivinhar as angústias, sondar o mistério, escutar o silêncio. Feliz de quem entende que é preciso mudar muito para ser sempre o mesmo".

Dom Helder Câmara


sábado, 15 de setembro de 2012

Braveza - Por Dr. José Flavio Vieira.


O Coronel Gumercindo Braveza era um matozense da gema. Nascera por ali, há mais de 70 anos e defendia sua terra, se preciso fosse, de trabuco na mão. Também pudera! O velho Gumercindo carregava no peito a honra de fazer-se a quarta geração dos bravezas – fundadores da pequena vila. Parte do sitio onde o Coronel vivia – São Vicente de Matozinho - dera origem ao povoado, ainda nos meados do século XIX. Ali tomara posse de umas terras devolutas o primeiro Braveza que ainda ostentava o fraque e o bigodão, em um retrato na sala de visitas do casarão da fazenda. As terras do Coronel já não tinham a fertilidade de outrora. Aos canaviais antigos substituiu o capinzal, e o eito e a bagaceira agora estavam representados pelo gado que preenchia toda a paisagem da fazenda e rumina dentro do velho engenho, hoje de fogo morto. O Coronel, no entanto, mantinha o orgulho, a vaidade, e a empáfia de outrora. Longilínea como vareta de soca-soca vestia-se de palito de linho branco, chapéu Pinto Vilela e cromo alemão. Educado, profundamente cerimonioso, Gumercindo falava pausadamente, com um silencio quase teatral, entre uma frase e outra. Sua palavra, em geral, devia aceitar-se como definitiva, ele não engolia discordância: sabia ser ríspido e bravo quando necessário. Neguinho que fizesse munganga ou querequequé nas barbas do Coronel podia se preparar para mão de pilão no toutiço ou tiro de sal no mucumbu. O homem não tinha muito senso de humor: era sim-sim, não-não. Por outro lado, o velho não se apresentava muito festeiro não. Em tempos remotos, no verdor dos anos, gostara de um arrasta-pé e até fundara o primeiro bordel da cidade, na chamada Rua do Caneco Amassado. Uma necessidade, explicava, para conseguir manter os homens no final de semana em Matozinho. Senão escapavam todos, sorrateiramente, para as cidades vizinhas. As cãs, no entanto, lhe impingiram também, um pouco a contra gosto, as insalubridades da virtude. Agora, comparecia a Vila, apenas aos sábados, no dia da feira, para rever os amigos, resolver algumas pendências e comprar alguns piqualhos para o São Vicente. Permanecia na sua casa da Rua Cerbelon Braveza, até a missa do domingo, quando, à tardinha, retornava para a labuta do sitio. Dizia-se que o escritório do Coronel, na vila, estava montado no café de Dona Ridinaura. Ali, em geral, tomava o caldo de mocotó pela manha, almoçava um porco na rola e, muitas vezes, jantava um prato mais leve como mungunzá ou buchada. Aproveitava, também, para atualizar-se com as ultimas fofocas de Matozinho. Dona Rirri, como carinhosamente a chamavam, mantinha uma espécie de SNI naquelas brenhas. Ela especulava tudo, mantinha um exercito de fofoqueiros amestrados, descobria mofados, inventava verdadeiros dossiês contra desafetos e disseminava as noticias com uma velocidade invejável. O slogan da casa era: Quem com quem dona Rirri? Gumercindo, no entanto, mantinha-se impassível, não perguntava nada, ouvia tudo com a cara de quem não estava gostando, mal disfarçando a curiosidade. Brigava, freqüentemente, com Rirri, por outra razão, a velha tinha fama de careira e gostava de explorar: o preço dependia da cara de leso de cada cliente. Pois bem, um belo dia o velho Gumercindo caiu doente. Fumante de um escora carroça, desde os quinze anos, com dimensões de charuto cubano, começou a mostrar-se rouco, piorando do pigarro habitual. Enrabou as meizinhas do boticário Janjão, sem demora. A pedido de um filho botou-se para capital, e lá se constatou tratar-se de um câncer na laringe. Semana depois, Dona Rirri deu a noticia no café: Gumercindo sofrera uma operação muito grande para tirar um quisto canceroso da goela e agora estava quase sem falar.
Alguns meses depois, correu a nova na vila: Coronel Gumercindo voltara. Alguns amigos mais chegados foram visitá-lo, evitando, no entanto, falar na doença e entrar em detalhes sobre aquela voz metálica e aquele lenço branco no pescoço, que, ao que se dizia, cobria um buraquinho por onde, agora, o Coronel respirava. O velho estava um pouco abatido, mais brabo do que sempre e o povo evitava perguntar qualquer detalhe: menos por consideração e mais por medo da resposta.
No sábado, Gumercindo, por fim, rompendo as resistências, voltou ao escritório: o café da dona Rirri. Foi recebido com festa: a velha olhava para ele com uma curiosidade nunca vista. Aparentemente medindo o tempo de sobrevida que o Coronel teria depois daquela operação. Rirri estava num pé e noutro para perguntar detalhes, esforçando-se para entender aquela voz de Pato Donald que saia do pescoço do Coronel. Mas cadê coragem? Se o homem já era mais grosso do que apito de navio quando estava bom, imagine agora acossado por uma doença deste tamanho! Rirri serviu o porco na rola do Coronel e ficou rodeando o homem como um mestre salas, esperando uma deixa, um mote, para entrar em detalhes sobre o quisto canceroso. O Velho manteve na maior cara de pau, o tempo todo serio que só boi mijando. Dona Rirri debulhou o mundo de fofocas acumuladas durante sua ausência, mas Gumercindo ouviu tudo calado, sem dar muita bola. No fundo, sabia que qualquer comentário abriria margem para perguntas pessoais que alimentariam os comentários do café, nas próximas semanas. Terminado o almoço, rápido pediu a conta e se escandalizou com o preço da dolorosa. Forçou a voz carvenosa que parecia sair de dentro de um barril e sapecou: Vinte e cinco reais! Tá ficando doida Rirri, que exploração é esta? Duas vezes mais caro do que na capital. Isso é um roubo, um assalto, um comunismo! Ridinaura, finalmente, teve o mote que esperava: Mas Coronel, tudo tá na maior carestia. Tudo subiu! A carne subiu! O arroz subiu! O sal subiu! O feijão subiu! A farinha subiu! O café subiu! Por falar nisso, o que é este buraquinho que o senhor tem aí no gogó? O Coronel disparou o trabuco:
É o cu, Dona Rirri! O cu! Tudo num subiu? Pois o cu subiu também e agora ta aqui no pescoço!

Dr. Jose Flavio.

2 comentários:

  1. Este belo texto do Dr. Flavio Vieira foi retirado do Livro Matozinho vai a Guerra, de autoria do mesmo, a melhor e mais bela obra literaria que já li. Parabens Dr. Flavio.

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  2. Afff! Demais, demais. Só rindo demais mesmo... O Flávio é genial.

    Parabéns, Morais pela escolha de seus textos aqui.

    O convite para o Cariricaturas já foi feito umas dez vezes no mínimo.

    Olha no seu lixo eletrônico ou SPAN pode estar lá. Dependendo da proteção do seu PC as mensagens que têm links são desviadas pala lá (lixo eletrônico). No nosso caso, não é vírus. Você clica no link do convite e se cadastra, podendo postar diretamente, no blog Cariricaturas, esses textos deliciosos que você publica.

    Abraço,

    Claude

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