SOBRE NÓS
Por Zé Nilton(*)
Recentemente peguei uma mania de ficar pensando pelas madrugadas adentro. Altas horas e eu ali matutando coisas. Antes me pegasse transido do alumbramento bandeiriano quando disse “pensando na vida e nas mulheres que amei”. Não é. Até porque, contrariando Martinho da Vila, pouco as tive. Conto nos dedos. E aqui pra nós eu não sei elas mas eu ainda hoje mantenho uma incomensurável paixão por cada uma. Ih, dirá você que “já passou, já passou”, ele continua com seus superlativos. E eu lhe direi: continuo.
Mas voltando, há momentos melhores pra gente pensar que quando nos entregamos às insônias das horas mortas? Só sabe quem se encontra no limiar da quadra perigosa dos sessenta. Estou nessa.
E assim pensando pensei noutro dia, na ante véspera do amanhecer, sobre a questão da identidade. Sobre os elementos formadores da identidade de um povo. Aí me veio à lembrança a famosa definição do termo Cariri, lida em todos os compêndios de história como sendo um qualificativo tupi, que significa – calado, silencioso –, em contraposição a outros índios tidos como palradores incoercíveis.
Para começo de conversa, após o Tupi o Cariri detém grande importância para a construção da identidade do povo brasileiro, notadamente do Nordeste. Povo numeroso ocupava grande extensão do Nordeste Central, abrangendo uma área cultural desde o norte da Bahia até o sul do Piauí, concentrando-se pelos estados de Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará.
Só para você ter uma idéia, quando no Século XVIII inicia-se o paulatino processo de ocupação das terras do sul da província do Ceará, inaugura-se igualmente o processo de genocídio e etnocídio das populações indígenas por empresas portuguesas, paulistas e mesmo nordestinas, por um lado, e por outro por contingentes familiares à procura de terras para a criação de gado, de pedras preciosas e do enriquecimento fundiário. E no meio disto tudo as missões catequéticas fazendo um jogo dúbio entre religião e poder.
Mesmo antes da presença de entradas e bandeiras, de forças militares, de curraleiros e de aventureiros, é bom que se diga, os primitivos habitantes das terras do Nordeste já vinham sofrendo um lento processo de dizimação, mercê de guerras intertribais pelo domínio de melhores áreas para a sobrevivência. É sabido que os Índios Tapuias, como eram denominados todos os índios não tupis, tanto por estes como pelos agentes das entradas e bandeiras, habitavam primitivamente o litoral e sofreram um paulatino processo de expulsão por grupos tupi-guarani para o interior. No interior das províncias tiveram que lutar com outras tribos por locais mais amenos e urbertosos, como beira de rios, planaltos, baixios. O nomadismo indígena levou a extinção quando não aculturação e mistura com outras guildas como sobrevivência étnica.
Um momento de grande turbulência ocorreu na maior tragédia entre os índios do Nordeste de um lado, e de outro, de colonos, de posseiros, de vaqueiros, de militares e missionários na chamada “Guerra dos Bárbaros”, ou Confederação dos Cariris. A maior rebelião dos silvícolas em terras nordestinas se arrastou por quase cinquenta anos, entre 1683 a 1713, com períodos de tréguas, de menor ou maior combate. Os agentes sociais de cabo da superioridade pela força das armas de fogo, das estratégias de combate e do apoio vezes velados vezes por interpretações das dúbias leis do estado português, enfim cumpriram seu ideal, o enfraquecimento da moral indígena e sua rendição às entradas e posses de suas terras.
Este famoso levante por parte das populações indígenas, desde o Rio Grande do Norte, Paraíba e Ceará como um todo resultou numa tomada de atitude do conjunto das tribos frente ao moto-contínuo de violência, covardia, subjugação e escravidão de famílias indígenas praticados por hostes de ádvenas de todas as partes. Crônicas missionárias falam de homens brutais e sanguinários, desconhecedores de leis e de limites da condição humana, despreparados para o exercício da alteridade cujo único interesse a mover sua inteligência e bravura para adentrar os longínquos, desconhecidos e temerosos sertões resumia-se tão-somente na busca do enriquecimento.
Tribos da nação Cariri destas bandas dos Cariris-Novos participaram do levante contra os bárbaros a partir de 1713 como os Icó, os Cariri, os Jenipapo, os Jucá, os Cariú entre outras, na segunda fase da Guerra, declarada pelos índios mansos e aldeados.
A visão idílica e romanceada com a qual alguns historiadores e escritores descrevem a vida das populações indígenas não condiz com a realidade de sua permanência no solo brasileiro, principalmente no nordestino. Desde que o homem branco guiado pelos tupis domesticados e escravizados (os bárbaros) pisou em solo nordestino, plantaram uma rotina de beligerância e desassossego no seio dos povos indígenas.
Usaram e abusaram de seus adjutórios em conflitos estranhos a seus interesses, recrutando-os sob pena de severos castigos para servirem em frentes de batalhas em decorrência das invasões holandesas na Bahia e em Pernambuco, da francesa no Maranhão, da guerra dos Palmares em Alagoas, do projeto expansionista da Casa da Torre, na Bahia, das lutas de potentados familiares como a dos Monte e Feitosa (nos Inhamuns e Cariri) e, por último, em movimentos pela independência como a Revolução de 1817 e na Guerra do Pinto ,em 1832. Saibam que o governo cearense convocou os últimos remanescentes indígenas para perfilarem-se juntos às forças restauradoras em favor da coroa portuguesa.
E saibam também quer quando ainda se chamava a nossa região de cariris-novos tribos que ocupavam seu espaço eram por demais fragmentadas em função dos embates tribo a tribo e dos constantes avanços de colonos e posseiros em guerras de conquista nesses tristes vales.
E digo mais, para extirpar de vez os últimos dos moicanos em terras caririenses, já que o grosso dos indesejáveis havia sido levados a pé para o litoral, em 1790, em 1860 guarnições bélicas dos estados da Paraíba, Pernambuco, Rio Grande do Norte e Ceará insurgiram-se contra remanescente dos Cariri, reduzidos entre Jardim e Milagres. Foi um massacre. O escocês Gardner noticia essas pobres figuras ainda tentando sobreviver, em 1834.
É isto. Nas minhas faltas de sono estou pensando em nós. Continuamos calados, silenciosos, arredios, amedrontados... Os bárbaros estão à vista, palradores e cheios de Crato.
Está tudo certo. Não há nada a dizer.
(*)*Antropólogo. Professor do Departamento de Ciências Sociais da URCA
E-mail: figueiredo.jnilton@gmail.com
Prof. Ze Nilton.
ResponderExcluirUma bela aula das nossas origens caririanas.
Zé Nilton,
ResponderExcluirEu chamo isto de insônia produtiva. Se não nos dedicarmos ao estudo da antropologia, da sociologia e da psicologia jamais conseguiremos uma convicção plena de entendermos sobre nós mesmos. Precisamos refletir muito sobre as nossas rízes culturais para podermos entender do quanto somos capazes. Necessitamos de uma injeção de brasilidade. Hoje eu tive a minha.
Ótimo texto.
Meu caro Morais, você sempre atento e gentil com meus escritos.
ResponderExcluirMeu caro Sávio Pinheiro, é isso mesmo. Você tem toda razão. É preciso voltar na história e dar voz e vez a tantos duplamente sufocados pelo processo "civilizatório". Muito obrigado por suas palavras.
No mês de julho dia primeiro, num evento,internacional na Universidade de São (USP), sobre as polítcas de transferencias de renda(bolsa esmola para alguns incaltos),depareime com um jovem de Minas, mas que mora no Rio;o mesmo é mestrando em Antropologia pelo Museu Nacional. Num dos intervalos, conversa vai e conversa vem, entramos num papo sobre as reparações históricas dos quilombolas, e aí surgiu na conversa os índios.Fiquei surpreso quando o mesmo me falou que existe no Ceará um movimento sobre reparações históricas, de alguns remanescentes indígenas, principalmente nos arredores de Fortaleza, no meu querido Estado.Estudei Sociologia aqui na USP, e não vi na literatura antropológica quase nada sobre o Ceará. Tem muita coisa nos estados vizinho de Pernambuco e Bahia.Os colonizadores cearense, abateram provavelmente todos, e os que sobreviveram, passaram por um processo de assimilação muito radical, pois não sobrou nada. Temos em Varzea Alegre distritos como (Calabaça e Ibicatu)e cidades vizinhas com nomes indígenas também, como(Iguatu, Carius, Caririaçu e Crato),mais não faz parte do nosso imaginario histórico varzealegrense, e regional nenhum significado ligado a os antepassado indígenas.E olhem que o Cariri, tinha condições naturais que propiciava essas populações viverem nesse território caçando e pescando.Fico por aqui, pois o assunto tem muito pano para as mangas.
ResponderExcluirWashington
Muito certo o que dizes, caro Washington. Existem processores de reparações e de demarcações principalmente nos municípios de Amarante e Caucaia, para os Pitiguaris, Anacés Tapebas. Há 1.200 anacés e 6.000 Tabepas lutando com os poderes públicos para direitos às terras que foram suas.
ResponderExcluirSó uma observação: a nomeação toponímica de acidentes, povos e locais são quase todas tupi. Poucos são nomes Cariri como Quixadá, Quixeramubim, Quixelô, Quixeré...
Já o nome Crato é de origem portuguesa.
Você tem razão de sobra qundo diz que o problema é complexo. Tanto pelas descontinuidades e fragmentariedade das fontes quando as há, como pela necessidade de se regionalizar as pesquisas e identificar as culturas locais e sua inserção no processo "civilizatório". Os antropólogos e sociólogos estão desenvolvendo estas idéias. Tomo a liberdade de convidá-lo para esta grande proeza.
Obrigado por suas observações.