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"Ultrapassa-te a ti mesmo a cada dia, a cada instante. Não por vaidade, mas para corresponderes à obrigação sagrada de contribuir sempre mais e sempre melhor, para a construção do Mundo. Mais importante que escutar as palavras é adivinhar as angústias, sondar o mistério, escutar o silêncio. Feliz de quem entende que é preciso mudar muito para ser sempre o mesmo".

Dom Helder Câmara


segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

O MARGINAL - Por Vicente Almeida

... Minha história começou quando percebi estar em um lugar permanentemente escuro, sentindo-me como se estivesse flutuando em um líquido.

Parecia uma bolsa e nela podia ficar em várias posições, e todas bastante cômodas. Estava confinado em algum lugar, mas tinha consciência da minha existência. O ambiente em que me encontrava era bastante agradável.

Havia momentos em que me sentia transportado de um lugar para outro, sem fazer o menor esforço. Ouvia ou percebia barulhos, como se viessem de algum ponto, próximo de onde me encontrava.

Às vezes adormecia e acordava com algumas batidas fortes dentro de mim e ficava assustado, pois, não sabia ainda que fosse o meu coração.

À medida que ia adquirindo conhecimento e consciência de mim, sentia ao mesmo tempo o meu corpo passando por grandes transformações. No princípio era uma diminuta massinha informe, mas essa massinha estava crescendo e formando partes bem definidas.

Foi quando passei a sentir e acompanhar o desenrolar dessas transformações: A cabeça adquiriu forma forma definida. Senti haver nela, muitas cavidades: Um corte horizontal que seria a minha boca, e iria utilizá-la para me alimentar e me comunicar, manifestando a minha vontade; Acima da boca, dois pequenos orifícios que seriam usados para a percepção das emanações voláteis dos corpos, os odores; Um pouco mais acima, duas concavidades, preenchidas por duas pequenas esferas que seriam utilizadas para visualizar as belezas do mundo exterior.

E por último, tão extraordinário quanto às outras formações anatômicas, experimentei a sensação de ouvir e reagir aos ruídos exteriores, inclusive a voz da minha mãe, através de duas concavidades laterais.

Senti o pescoço se desenvolvendo e distanciando a minha cabeça do tronco. E no tronco, quatro pequeninos cotos também cresciam e iam formar os braços, as pernas e todas as articulações necessárias a minha locomoção.

Mas não parava por ai, Na parte inferior do meu corpo, percebi que se formaram mais duas pequenas aberturas: Vim, a saber, que uma, seria utilizada para expelir os excrementos sólidos, e a outra para eliminar substancias líquidas, já inúteis ao meu organismo.

Fiquei maravilhado com a formação da parte interna do meu corpo, todos os órgãos iam sendo plasmados, cada um segundo a sua natureza e utilidade.

Aos poucos ia me sentindo como se estivesse recebendo e processando cada vez mais informações, mais conhecimentos. Fiquei sabendo das minhas origens e o porquê desta situação. Descobri onde estou! É, estou em transição pelo processo chamado gestação.

Fiquei sabendo que dentro de mais algum tempo, devo sair desta clausura e terei o prazer de ver o ser que me mantém neste saudável aconchego e quem chamarei de mãe.

estou também informado que tenho como principal missão, contribuir para a transformação da vida de uma pessoa, que ainda é insensível ao amor, e se eu não chegar a tempo, ela sucumbirá desviando-se do reto caminho. Dizem que vou conhecê-lo ao ouvir sua voz pela primeira vez.

O tempo passou, já estava quase pronto para abandonar meu confortável abrigo e ver o mundo exterior, quando senti que a minha mãe, estava ansiosa, e aguardando a chegada de alguém.

Notava que além da ansiedade, ela também estava muito apreensiva, e isto muito me entristecia, pois, estávamos tão bem que me surpreendi com o seu comportamento! Comecei a me preocupar, pois ela estava transmitindo pra mim suas amarguras e eu ficando com muito medo. É já conhecia essa palavra e o seu significado – Medo!

Como já ouvia bem as conversas exteriores, fiquei sabendo que a minha mãe não tinha como me sustentar sozinha e estava aguardando alguém que irá resolver esse problema, talvez por isto estivesse tão ansiosa.

...Ouvi barulhos. Alguém chegou e passou longo tempo conversando com ela...

...A mamãe derramava algo quente sobre mim e estava me queimando...

...Ela estava aflita e chorando muito como se estivesse desapontada...

...Ouvi-a falar que foi enganada com promessas. Era isso mesmo, alguém a enganara!

Percebi que estavam brigando com ela e se exaltando cada vez mais...

...De súbito, ouvi um ensurdecedor estrondo... Algo atravessou o meu corpinho... Tive uma sensação desconhecida e dolorosa...

...Senti uma imensa dor pela primeira vez, e compreendi que os meus sonhos terminavam naquele momento. Minhas forças vitais estavam desaparecendo e eu pensava na minha mãezinha, que com o estampido foi como se tivéssemos caído com grande impacto.

Em meu pensar pequenino, sentia angústia, muita angústia. Nada podia fazer. Senti o seu coração parar, e a minha aflição se transformou em terror.

Como eu poderia salvar alguém se nem ia chegar a nascer? E aquela criatura que eu deveria ajudar a transformar sua vida? Como fazer para avisá-la? Fiz tantos projetos!

Aos poucos, fui como que adormecendo, minha vida corpórea foi se extinguindo, não tinha mais forças e um liquido me inundava e me asfixiava. Já não podia respirar.

Eis que alguém se aproximou da barriga da minha mãezinha, já inerte, e consegui ouvir um murmúrio “Vocês não viverão, eu não quero ter filho nem mulher”.

De repente fiquei atordoado, estava recebendo a última informação. A voz do nosso algoz era a mesma daquele que entendi ser meu pai, e era também daquele a quem deveria ajudar a mudar o rumo da sua vida...

...Ele era um marginal!
Escrito por Vicente Almeida

11 comentários:

  1. Vicente.

    Um texto comovente, triste e que somos obrigados e reconhecer sua existencia enraizada no modelo de concorrencia da vida humana nos dias atuais. Que bom seria que assim não fosse, mas assim o é, pra nosso desanimo e pra nossa tristeza. Poucos tem a sua coragem de falar de um assunto tão serio e que temos sido obrigados a assistir sem que nada possa fazer. A destruição do ser pelo ter.

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  2. É...

    Morais:

    Durante a bonança, quase nada se aprende, mas, quando vem a tragédia, a lição que fica é imorredoura, e dela poderemos extrair lições inesquecíveis.

    Abraços do

    Vicente Almedia

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  3. Vicente, comecei a ensinar desde os 15 anos,sempre que via um texto desse tipo pedia aos alunos que dessem um título. Se você tivesse sugerido um título aos blogueiros, eu seria a primeira a intitular seu comovente texto: "O ALGOZ ". Ensinando Francês trabalhei com um adolescente e sua mãe em horários diferentes.Num curso de línguas é quase impossível o aluno não se expor, não falar de seus problemas íntimos, até porque trabalha-se com conversação.Um aluno me falou em " off" que seu pai bebia e batia na mãe toda hora que chegava. À noite era a mãe que me falava : seu filho era dependente químico e ela trabalhava o dia todo para sustentar essa família e dizia que vinha ao curso para espairecer. Vicente, você falou em lição: pois esse garoto de 16 anos livrou-se da dependência e hoje fala francês fluentemente e trabalha como intérprete no aeroporto e nos hotéis de Fortaleza. A mãe se aposentou e eu não quero falar do resto da família que para mim se resume em ZERO.
    Abraço Fafá

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  4. É...

    Fafá:

    Antoine Laurent de LAVOISIER 1743/1794, definiu muito bem: "Nada se perde, nada se cria, tudo se transforma". Ele falava da combinação de matérias, mas, pode perfeitamente ser aplicada ao comportamento humano que quando sofre, esse sofrimento não é em vão, posteriormente se transforma em luz.

    Ninguém sofre por acaso. Vejo no sofrimento, a natureza lapidando e moldando o ser para voos mais altos.

    E você citou um grande exemplo demonstrando que Após a tempestade sempre vem a bonança.

    Valeu

    Abraços do

    Vicente Almeida

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  5. Vicente, agora faço como nossos blogueiros poetas: você apenas deu o mote." NADA SE PERDE, NADA SE CRIA, TUDO SE TRANSFORMA" - Lavoisier.

    Quando eu era praticamente paralítica, meu irmão muito generosamente comentou com um amigo que ia cuidar de mim, me proteger, na sua infinita bondade, suas palavras ecoaram muito forte em mim.Batalhei, suei, enviei o convite de minha formatura, ele respondeu que não merecia receber pois nunca acreditou que eu fosse chegar onde cheguei.15 dias depois da formatura eu já estava trabalhando. Isso só serviu como estímulo para mim. Quando ele adoeceu, vítima de um cãncer de pãncreas, A PEQUENA GRANDE(como ele me chamava) prontamente assumiu sua causa e o acompanhou até os últimos momentos. Tudo isso era dito aos familiares e amigos, a gente nunca comentou nada, nos ajudamos mutuamente e não deixamos de nos amar fraternalmente em função de nossa maneira diferente de pensar. Incrível, Vicente, você tem o dom de despertar em mim, experiências vividas e bem assimiladas...assim que vejo suas crônicas, pego o teclado e a idéia flui naturalmente.
    Obrigada.
    Fafá Bitu

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  6. É...

    Fafá:

    Não há coisa melhor nesta vida do que fazer alguem feliz. O retorno virá inexoravelmente. Mais uma vez você demonstrou isso no último comentário.

    Estamos sintonizados.

    Abraços do

    Vicente Almeida

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  7. Realmente, Vicente, estamos bem sintonizados. Obrigada pela atenção,
    Fafá

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  8. Olá Vicente, degustei o seu texto e como sobremesa o seu bate-papo com a Fafá. Uma refeição perfeita e bem elaborada. Estou só apreciando...

    Um abraço.

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  9. Realmente, Sávio, o papo com Vicente é bom de degustar, sinto-me como se fosse sua velha amiga. Pode "curiar", como dizem "lá in nóis".Abraço Fafá

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  10. É...

    Olá Dr. Sávio

    Obrigado por perder tempo com nosso singelo texto.

    Estou de gaiato neste blog, e como não sei falar sobre Várzea Alegre, nem concorrer com o profundo conhecimento de vocês, quebro a rotina, inventando fatos e personágens, mas, sempre com a finalidade de contribuir para a introspecção e a paz interior.

    Já estou tão familiarizado com a Fafá que me delicio com seus comentários. De fato, parece que aqui estamos batendo um papo e nos conhecendo.

    Um grande abraço do

    Vicente Almeida

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  11. Pela primeira vez discordo de você, Vicente, ninguém perde tempo com seu texto.Deixa de ser modesto, eu não o sou. Sávio é um bom amigo conterrâneo e está todo feliz por me ver entrosada no blog. Morais então nem liga mais prá mim porque sabe que conquistei boas amizades aqui.Você não tem nada de gaiato, adoro seu estilo de escrever.Delicio-me com suas postagens e comentários. Realmente, eu tinha essa pretensão:bater um papo descontraído. Conheço muita gente no blog quase todos já conhecem minha trajetória, precisava conhecer uma pessoa diferente para trocar idéias. Adorei nosso papo de hoje. Volte sempre. Abraço amigo de Fafá

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