Páginas


"Ultrapassa-te a ti mesmo a cada dia, a cada instante. Não por vaidade, mas para corresponderes à obrigação sagrada de contribuir sempre mais e sempre melhor, para a construção do Mundo. Mais importante que escutar as palavras é adivinhar as angústias, sondar o mistério, escutar o silêncio. Feliz de quem entende que é preciso mudar muito para ser sempre o mesmo".

Dom Helder Câmara


sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

CONHECIMENTO DE CAUSA - Por Mundim do Vale

Quando o assunto é sertão
Eu rimo e não tenho medo
Porque já furei o dedo
Em caraca de algodão.
Dancei forró de feição
Em latada no terreiro
E assisti violeiro
Se danando nos repentes,
Também escovei meus dentes
Com raspa de juazeiro.

O sertão é um lugar
Completo de inspiração
Em cada canto do chão
Tem um tema pra rimar.
Foi lá no grupo escolar
Que na minha vez primeira
Fiz versos de brincadeira
Para minha professora.
E a boa educadora
Era Maria Vieira.

Lá no sertão meu padrinho
Certa vez me abençoou
E no momento falou:
- Deus lhe dê um bom vizinho!
Eu recebi com carinho
E Deus também atendeu
Porque no caminho meu
Todo vizinho é amigo.
Assim eu trago comigo
A bênção que ele me deu.

Cheguei a participar
Das apanhas de arroz
Comendo baião de dois
E arroz doce no jantar.
Também cheguei a furtar
O santo de uma vizinha
Porque a chuva não vinha
Para o legume nascer.
Depois pegou a chover
E nem plantação eu tinha.

Quando foi pra caminhar
O freio foi minha testa
Mas eu fazia uma festa
Se saísse do lugar.
Para aprender a nadar
No Riacho do Feijão
Meu curso de natação
Foi tronco de bananeira.
Eu colocava em fileira
E amarrava com um cordão.

O Padim Ciço Romão
Não cheguei a conhecer
Mas nunca fui de perder
O começo da missão.
Eu via Frei Damião
Naquele seu caminhar
Andando bem devagar
Abençoando meu povo.
E eu de sapato novo
Querendo lhe acompanhar.

No sertão eu fiz gaiola
Com talo de macambira
Comi pirão de traíra
E ouvi som de viola.
Fiz alpercata de sola
Pra no domingo ir a feira
Descendo pela ribeira
Vendo o sol aparecer,
Brincando de se esconder
Nas folhas da aroeira.

Lá eu fiz cerca de vara
Tomei água de cabaça
Me intoxiquei com fumaça
Quando queimava coivara.
Nas noites de lua clara
Eu ficava na calçada
Prosando com a moçada
Atrás de arranjar xodó.
Mas sempre ficava só
E os outros com namorada.

Eu rimo uma rezadeira
Com o ramo bento na mão
E rimo a fé do cristão
Levando o pau da bandeira.
Rimo a cabocla faceira
Que passa no rebolado
Mas como tem namorado
Ninguém vai mexer com ela,
Pra não haver sentinela
Nem homem virar finado.

Meu transporte era jumento
O acento era cangalha
Meu chapéu era de palha
E a brisa só do vento.
Eu vivia cem por cento
Gostando do meu lugar,
Tinha açude pra nadar
Que era a minha vaidade.
Mas eu ia na cidade
Pra rezar missa e votar.

Foi meu pai lá no sertão
Que me ensinou a verdade
Da arte da humildade
E do valor do perdão.
Se não guardei a lição
É porque fui displicente
Mas é sempre o pai da gente
O primeiro educador.
E como bom professor
O meu pai foi paciente.

Eu só deixei o torrão
A procura do espaço
Mas hoje um verso que faço
Tem tudo com meu sertão.
Eu rimo a sombra do oitão,
A copa do cajueiro,
A chuva de fevereiro,
A alegria do gado
E o canto improvisado
De um aboio de vaqueiro.

Quando o dia amanhecia
Uma sabiá cantava
E mamãe se levantava
Me desejando bom dia.
No mesmo instante eu dizia:
- A bênção mamãe querida,
Já vai começar a lida?
E aquela santa pequena
Dizia com voz serena:
- Deus proteja a sua vida.

Se houver reencarnação
Como já ouvi falar,
Vou querer reencarnar
Nas quebradas do sertão.
Quero ver num barracão
Uma festa de reisado
Com o boi todo enfeitado
E a pinta botando um ovo.
Quero ver todo o meu povo
Pra me lembrar do passado.

Mundim do Vale

9 comentários:

  1. Muito bem descrita a vida do sertão .... Parabéns.

    ResponderExcluir
  2. Lindos versos, Mundim!
    Parabéns, poeta do sertão!

    ResponderExcluir
  3. Mundim,

    Acho que estou "virando" sua fã número um pois você acerta em cheio no meu gosto.

    Vou carregando mais esses "véuço" pro Cariricaturas.

    Abraço,

    Claude

    ResponderExcluir
  4. Mais um excelente poema postado por Raimundinho. Falar das coisinhas do sertão é prazeroso, pois mexem com a mente de qualquer ser humano, principalmente aqueles que tiveram a oportunidade de participarem das debulhas de feijão, adjuntos de apanha de arroz, reisados, maneiro pau e outros folclores existentes que eram apreciados por todos nós moradores da zona rural e até mesmo da zona urbana.
    Parabéns Raimundinho por resgatar essa cultura popular que marcou um evo na história de nossa infância e adolescência, onde praticamente não existe hoje por força das mudanças culturais existentes no nosso meio.

    ResponderExcluir
  5. Adorei os versos, Mundin. Viajei na suas rimas e reencontei as paisagens da nossa terra.
    Um grande abraço.

    ResponderExcluir
  6. Todos esses seus versinhos,
    Faz parte da cultura popular
    Falando das coisinhas do sertão
    Que nos encontramos por lar
    Alegrando esse pobre camponês
    Que na vida vive só de pensar

    Nas noites de lua cheia,
    Quando se fazia luarada
    Na grande ansiedade
    De arranja a namorada
    Como era belo e lindo!
    Ao cantar da passarada.


    A violência tomou de conta
    A droga sempre presente,
    Não existe mais respeito
    Tudo está diferente.
    Filho não respeita os pais,
    Muita gente incompetente.

    Partindo desse descaso
    Só nos resta corrigir,
    Mostrando a população
    O bom tem que existir.
    Amando mais ao próximo
    E pensando em progredir.


    Ao meu grande poeta Raimundo,
    Que descreve a cultura popular,
    Receba minha grandiosa gratidão.
    Orgulho do povo do nosso lugar.
    Por valorizar o nosso torrão amado,
    Fonte de sua bela grade curricular.

    ResponderExcluir
  7. Obrigado.
    Morais, Klébia, Glória, Claude,
    João Bitu e Dr. Flávio.
    Eu acredito que o título faz jus
    a poética e ao autor,
    Abraço a todos.
    Mundim

    ResponderExcluir
  8. Olá pessoal! Eu já falei uma vez e agora repito:


    Pra cantar o sertão com maestria/
    Sem ferir Patativa e outros mais/
    Quero aqui versejar, sem ter jamais,/ De criar neste canto, a fantasia./ Eu bem sei, que o Mundim, na poesia/É um vate e autor inteligente./ Na cantiga, ele mostra à sua gente/ Com a verve de um grande escritor,/
    Que a vida do campo tem valor/
    E que o povo daqui é bem valente.

    Parabéns, pelo belo poema.

    ResponderExcluir