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"Ultrapassa-te a ti mesmo a cada dia, a cada instante. Não por vaidade, mas para corresponderes à obrigação sagrada de contribuir sempre mais e sempre melhor, para a construção do Mundo. Mais importante que escutar as palavras é adivinhar as angústias, sondar o mistério, escutar o silêncio. Feliz de quem entende que é preciso mudar muito para ser sempre o mesmo".

Dom Helder Câmara


quarta-feira, 9 de março de 2016

SEXTA DE TEXTOS – Sávio Pinheiro


SINAL DOBRADO
Dedico a Vicente de Assis Leandro (in memoriam)*

Dentre as atividades que desenvolvi na infância, a de tocador de sino foi a mais sonora, colocando em segundo plano o nostálgico aboiar de tangedor de gado ao pasto após a ordenha.

O sino da igreja matriz soava de forma fúnebre ao ser manuseado pelo operário que suava em demasia ao tocá-lo. O impacto firme do badalo produzia um som quando manipulado nas entranhas desse instrumento majestoso, que enchia os ouvidos da população com sede de saber quem partira para a eternidade.

Existia o Sinal Simples, tocado apenas em um sino de tonalidade grave, transmitindo a sua mensagem; o Sinal Dobrado, onde se usava os dois sinos existentes: o de tom mais grave e o de tom mais agudo; o Repique, uma sequência de sons no sino de tom mais agudo sinalizando a entrada de mais um anjinho no céu e o Toque Duplo, que utilizava o sinal simples mais o repique emitindo um som mais nostálgico. Essa riqueza de toques sinalizava, imponentemente, o desenlace fatídico de alguém e uma desnecessária mensagem codificada.

Havia, naquela época, uma discriminação grave. A condição social e matrimonial das pessoas era lançada na atmosfera em peças sonoras, num código produzido pelo tocador amador para que a população pudesse percebê-las. O sinal dobrado custava caro e o toque duplo era direcionado às moças solteiras e castas.

Dessa forma, o estado civil da mulher e o perfil financeiro do indivíduo eram expostos, escancaradamente, em anunciação desumana e discriminatória, maculando uma época que o próprio tempo, sabidamente, deixou ficar para trás.


* Último tocador de sino da fase terceirizada da paróquia de São Raimundo Nonato de Várzea Alegre CE, iniciada por Amadeu Siebra (pai do sanfoneiro Chico de Amadeu) nos primórdios do século vinte e encerrada por Raimunda Teixeira (minha avó materna) no final dos anos setenta.

11 comentários:

  1. Parabens Dr. Savio.

    Um belo e bem narrado texto da historia religiosa de nossa terra. Ninguem como voce foi tão ligado a religião por força de seus avós e especialmente Dona Raimunda Teixeira.

    Obrigado pela bela materia.

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  2. É Morais mais Sávio omitiu um outro responsável pelo sino. Aquele que ora homenageou VICENTE. kkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkk

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  3. Sávio:
    Muito bom este seu texto.
    que venham outros, em outras sextas-feiras.
    Armando

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  4. Sávio,
    Vc foi muito feliz na estréia. Seus avós e Vicentinho devem estar muito felizes lá em cima com esta bela homenagem. Parabéns!
    Fafá

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  5. Amigo Xico Bizerra,

    Agradeço o seu comentário, que além de poético, agregou valores ao majestoso sino, que com a sua nostalgia lhe conduziu a sua saudosa infância do interior. Pena ter sido perdido comentário tão interessante devido a problema técnico na postagem.

    Um abraço sonoro.

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  6. Morais,

    Eu quis registrar a notoriedade do sinal dobrado daquela época e não me detive na beleza magistral do sino como instrumento da nossa expressão religiosa. Mas fica registrada a importância simbólica do sino na nossa fé e na nossa religiosidade.

    Obrigado pela lembrança de meus antescendentes.

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  7. Fidera,

    Não nego. Fui um ícone do sino da igreja matriz de Várzea Alegre. Acalentei com o meu toque fúnebre muitos entes tristes por perdas importantes. Único instrumento de corda que toco.

    Um abraço.

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  8. Magnólia,

    O Corcunda de Notre-Dame ficou famoso em todo mundo através do grande romance do Victor Hugo. Será se terei alguma notoriedade no futuro como ex-tocador de sino?

    Obrigado pela leitura e pelo comentário.

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  9. Armando,

    Agradeço a leitura do Sexta de Textos. Sou adepto, mesmo sem grande aprofundamento, da antropologia e da história contidas no seu trabalho.

    Grato.

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  10. Fafá,

    Quantas vezes você ouviu as minhas tristes melodias emanadas daquele magnífico instrumento de cordas.

    O Vicentinho e tantos outros também manipularam aquele saudoso instrumento. Que Deus os ilumine!

    Um Abraço!

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  11. Compadre,

    Adorei o texto, fui remetida aos anos da infância, onde a nossa curiosidade mórbida, nos levava à Igreja para saber quem havia falecido.
    A sua versatilidade é realmente impressionante, Médico, Escritor, Cordelista e Tocador de Sino.
    Beijos da amiga

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