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"Ultrapassa-te a ti mesmo a cada dia, a cada instante. Não por vaidade, mas para corresponderes à obrigação sagrada de contribuir sempre mais e sempre melhor, para a construção do Mundo. Mais importante que escutar as palavras é adivinhar as angústias, sondar o mistério, escutar o silêncio. Feliz de quem entende que é preciso mudar muito para ser sempre o mesmo".

Dom Helder Câmara


segunda-feira, 1 de abril de 2013


Farinhada
- Claude Bloc -

Dedicado a Morais, Mundim e Dr. Sávio 

O dia tinha amanhecido muito claro e limpo... No riacho do baixio a água tinha baixado permitindo a passagem da gente e, mais adiante, sob o telhado da casa de farinha, já se podia ver uma montanha de mandioca sendo "raspada", para tirar a casca. Dessa vez, nada de junta de bois. Foram escolhidos alguns homens “fortes” para girar a roda da moenda munida de manivela e dessa forma acionar a bola revestida com lâminas afiadas destinadas a ralar a mandioca. Estava prevista a troca dessa engenhoca manual por um motor que teria a mesma função, mas que certamente agilizaria e facilitaria e execução dessa tarefa que era a mais árdua.

Nesse dia, sentei-me junto às mulheres e às crianças sobre uma lona recoberta com as raízes das mandiocas e me pus a trabalhar. Era um serviço interminável, mas aos poucos, os montes de raízes já raspadas e branquinhas afloravam e se transformavam em montanhas. Depois de raspadas as mandiocas, pouco a pouco, iam sendo carregadas e dizimadas pelo cevador - instalado e montado numa banqueta - que era chamado de “caititu”. Essa era a peça, que servia para ralar a mandioca, e que era movida por um veio (manivela) puxado a mão (como citei acima).

A casa de farinha era grande, coberta com telhas comuns.  Em cada espaço, atividades diferentes iam completando, o ciclo da farinhada. Abaixo da banqueta do cevador, montes de raspas de mandioca iam sendo coletadas e depois carregadas para a prensa onde a massa era enxugada deixando, assim, escorrer o amido ainda líquido. A seguir, esse líquido grosso e esbranquiçado era levado para recipientes próprios e dava-se início a um novo processo que era a extração da goma (amido). Essa tarefa cabia às mulheres. O cuidado era grande, pois a massa era preparada e tratada para haver  a sedimentação do amido e, consequentemente, a retirada da manipueira que, segundo consta, é uma substância tóxica (um veneno) que não deve ser ingerida.

Um dia “Redondo”  que era um dos torradores de farinha caiu teso no pé do forno. Foi um corre-corre danado. Naninha sua mãe começou a chorar.

- Ai, meu “fii” deu uma agonia. Foi bem tu, Cãida,  que num tirou o diacho da manipueira direito. Ai meu “padim Ciço” acudis meu “fii “. Valei-me meu Coração de Maria.

O desmaiado começou a tossir com um bafo de cachaça que espantou a freguesia. E a mãe aliviada agradeceu a Padim Ciço e voltou ao trabalho.

Em outro espaço, a parte da massa composta de raspas de mandioca prensada e enxugada era levada a um forno enorme aquecido por lenha em brasa, onde os forneiros especialistas (dentre eles, Redondo)torravam esse produto espalhando-o com uma espécie de rodo de madeira até chegarem ao ponto certo de torrefação.
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Também no forno eram feitos os deliciosos beijus muitas vezes complementados pela adição de coco ralado ou amendoim moído. Mãe “Cãida” e Naninha eram as responsáveis pelo preparo dessas delícias enquanto a moenda girava e a mandioca se transformava em farinha.
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Pois é, assim decorria o dia e chegava a noite. Na última noite da farinhada a  "coisa" era outra. Apareciam os sanfoneiros, os violeiros, os dançadores de cocos, de baião, os tocadores de “pife” e seu Antõi Coelho dançando “a dança das facas”...

Aí começava a festa. De quando em quando, um golinho de cachaça, um café com beiju e, assim, a noite passava.

Claude Bloc



7 comentários:

  1. Claude.

    Como é que se pode esquecer um negocio desse. Fui lendo, fui lendo e esperando a hora do sanfoneiro chegar, a hora do "Eu tava na peneira eu tava peneirando, eu tava no namoro eu tava namorando".

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  2. Claude,

    O que mais me impressionou numa farinhada em dia não festivo - vi apenas uma vez - foi a quantidade de mulheres trabalhando e a tranquilidade dessas senhoras em relação aos seus filhos pequenos. As crianças corriam e brincavam sobre aqueles pequenos córregos de ácido cianídrico (puro veneno) e as suas mães entretidas com o trabalho nem os via. Porém, de vez em quando, uma exclamação quebrava o silêncio: - Zefa!... cuidado com os animais pra não beberem dessa água, que é venenosa... Saí para não testemunhar um acidente doméstico. Realmente, o nordestino é mesmo um forte!

    Nas noites de farinhada o cenário era outro: tapiocas, bejus, artistas, "Redondos" e muita animação. O povo enfarinhando-se de alegria. Uma autêntica festa popular.

    Obrigado pela dedicatória e pela oportunidade dessa dupla recordação.

    Um grande abraço.

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  3. Claude.
    Obrigado por ter dividido comigo,
    Dr. Sávio e Morais,esse dia cultural.
    Eu participei muito de farinhadas
    e posso lhe jurar que se estivesse
    presente nesta, teria feito um verso e comido uma fatia de beiju.
    Abraço do Jatí.
    Mundim.

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  4. Morais,

    Em Serra Verde, assisti a umas poucas farinhadas, mas todas nesse clima meio caótico como cita Dr. Savio.

    Esqueci até de falar no texto sobre o girau onde eram colocados os torrõoes de goma pra secar.

    Tempinho bom de lembrar.

    Abraço,

    Claude

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  5. Sávio,

    Antes de lhe responder quero agradecer pela alegria que me proporcionou indo ao meu encontro no Crato com sua esposa.

    Que aconteçam mais desses encontros.

    Quanto ao texto, o mais esperado mesmo era o final da farinhada com os festejos e as brincadeiras. "Redondo" se chama Antonio e hoje mora em D. Quintino. Ele também era quem dava o ponto da rapadura nas gamelas... mas esta é outra história... (risos)O mais engraçado é que ele não tem nada de redondo,na verdade ele deve ter perto de 1,80m e é bem magro.

    Abraço natalino,

    Claude

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  6. Mundim,

    Aproveite a "farinhada" cultural e e faça seus "veuços". Tem mote bom por aí...

    Abraço natalino pra você,

    Claude

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  7. Morais,

    Estou aguardando a história...
    Fiquei curiosa.


    Abraço,


    Claude

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