CONTO DO MUGIDO - Dr. José Sávio Pinheiro.
O êxodo rural não levou as pessoas apenas para os grandes centros. Os pequenos aglomerados urbanos também abrigaram grande parte dos rurícolas que tiveram de deixar os seus lares por causas diversas. A necessidade de acompanhar os filhos que se profissionalizavam foi a razão principal da saída de muitas outras viúvas daquele recôndito sertão.
Está bem, minha mãe, eu irei chamar o médico para lhe atender! Mas, desta vez, não vá deixar de seguir os seus conselhos, combinado? A senhora insiste em tomar decisões precipitadas, colocando a sua vida em risco – falou sério, o filho mais velho de dona Zulmira, com muita convicção.
Esta indomável senhora deixou o seu habitat natural para viver uma experiência completamente nova e cheia de regras, na cidade. O cumprimento de novos horários e uma rotina repleta de novidades, a fez transfigurar-se. Vive infeliz e demonstra o seu mau humor nos momentos mais inconvenientes, tornando a vida dos que lhe amam mais difícil e complicada.
Quero que a senhora se troque após um bom banho de chuveiro para esperar o doutor - falou gentilmente o dedicado primogênito, consertando um eletrodoméstico, na oficina instalada na sua própria residência. O empréstimo bancário para a construção civil levou muitos profissionais a construírem os seus estabelecimentos comerciais nos mesmos imóveis residenciais, dando-lhes, assim, uma certa garantia, caso não conseguissem quitar, a tempo, os débitos adquiridos.
O médico demorou um pouco, mas chegou. Estava operando uma senhora, que os filhos siameses, de bifurcação superior, haviam morrido momentos antes, nas mãos de uma parteira leiga. Se o caso tivesse acontecido em um grande centro, também teriam sucumbido, já que era um só corpo para duas cabeças. Um caso raro, porém presente.
E aí, dona Zulmira, o que a senhora está sentindo? – Perguntou o médico, com voz mansa, porém aliviada, após o inesperado estresse daquela complicada intervenção cirúrgica, realizada sem anestesista e pediatra, prática comum nos anos oitenta, do século vinte, em hospitais de pequenas cidades interioranas do Nordeste.
A intransigente senhora, de setenta e dois anos, debulhou o seu rosário de sintomas, trazendo queixas de um passado longínquo, com riqueza de detalhes, que de melhorar a relação médico-paciente, complicou, ainda mais, o raciocínio do esculápio para um diagnóstico correto. Mesmo assim, o representante de Hipócrates conseguiu agregar os sintomas e produzir um tratamento satisfatório.
Nesse ínterim, o seu filho, que presenciava a consulta com atenção, e que notou uma certa empatia entre o profissional da medicina e a sua paciente, leva-o a um canto da casa e faz-lhe um pedido, quase sussurrando.
Doutor, eu gostaria, que o senhor aproveitasse essa oportunidade, que é rara e oportuna, para tentar demover, da cabeça de minha querida mãezinha, o seu desregrado hábito de ingerir leite mugido. Aquele consumido cru, no raiar do dia, ainda quentinho, recém-saído do peito da vaca. Se o conseguir convencê-la, ficarei muito agradecido ao senhor e à medicina.
O médico retorna à sala, de mansinho, arquitetando uma estratégia para conseguir o seu intento, sem desgostar a paciente e os seus familiares. Concentra-se, mergulha num passado distante onde essa prática era realidade, rever os fantasmas de sua infância num ambiente familiar e dispara a sua artilharia intelectiva.
Dona Zulmira, para que a sua doença tenha cura, faz-se necessário que a senhora coopere, procurando se alimentar da melhor maneira possível. O leite é um alimento muito saudável e necessário. Ele é rico em proteínas e cálcio, além de ter um excelente aporte calórico, ou seja, é um alimento bastante forte. Promete-me consumi-lo com frequência, para o sucesso do nosso tratamento?
Claro doutor! O alimento que mais gosto e que consumo, diariamente, é o leite cru, no romper da aurora. Tomo uma leiteira, inteirinha. Pois ele, além de forte, traz sustança e muita saúde. Pode ficar despreocupado. - Responde a paciente.
O médico, satisfeito, observa que a manobra foi válida para entrar neste polêmico tema, que já havia produzido tantos dissabores familiares, quanto tentavam dissuadi-la da prática de tal costume.
Creio eu, que a senhora tenha morado muitos anos no interior do sertão e que conheça os detalhes da vida do homem do campo e os seus hábitos... - Rebate o médico, tentando mergulhar na mente daquela consumidora de leite não pasteurizado, o qual transmite tantas doenças para a nossa população.
Conheço como ninguém! – Responde dona Zulmira, animada. – Pois bem, continua o médico: A senhora sabe perfeitamente, que o tirador de leite é um homem simples, que mora em uma singela moradia, geralmente sem banheiro e água encanada, e que nunca teve a oportunidade de estudar ou adquirir algum conhecimento sobre medidas básicas de higiene, não sabe? Então... Imagine aquele homem acordando pela manhã com os olhos repletos de remelas, após ter feito amor com a sua estimada patroa, saindo para o mato, a fim de fazer as suas necessidades fisiológicas. Claro, que ele fez a sua higiene matinal, após o ato defecatório, com folhas rasteiras e frágeis, sujando os seus longos dedos, que foram limpos num pedaço de sabugo, próximo. Continuou a sua trajetória até o curral, onde as vacas se encontravam deitadas com as tetas atoladas no esterco recém-eliminado. Ele as cutuca com vara curta e elas o obedecem levantando-se para a ordenha. Faz a limpeza daquelas tetas sujas, com a própria cauda do animal, ainda úmida da sua própria urina. Dá continuidade a retirada do leite, cuspindo em ambas as mãos, para lhe facilitar o manuseio. Some-se a isso, uma provável infecção no peito da vaca, que chamamos de mastite, ou uma doença pré-existente naquele animal que delicadamente nos oferece o sustento, com a sua rica substância orgânica. Lembre-se, que o delicado animal pode está com tuberculose, brucelose ou qualquer outra doença nociva ao homem. A senhora acha, que deve continuar tomando o tão saboroso, poético e maravilhoso leite mugido?
Após um breve momento, no recinto daquela silenciosa casa, ela retruca endiabrada:
Eu não tomo mais leite, é de jeito nenhum! – Fala de dentes serrados.
O médico, percebendo que a sua estratégia falhara e sem coragem de encarar mais àquela família, sai rapidamente, antes mesmo de receber os seus tão sofridos honorários.
É...
ResponderExcluirSávio:
Médico às vezes sofre nas mãos de pacientes.
Apesar da sua sapiência, tem ora que se embanana todo, se engasga mesmo ao se deparar com certos matutos.
Ótimo conto
Vicente Almeida
Dr. Savio.
ResponderExcluirQuando o meu pai desleitava a ultima vaca, levava o leite com espuma e tudo no caldeirão e botava para coalhar em cima da cristaleira.
Por volta das 9 horas da noite, antes de dormir, consumia a coalhada com açucar. Um dia minha mãe preparava umas gotas de coramina com nosnoscada e disse: Jose, voce quer um pouco, dizem que é bom remedio para o coração! Ele respondeu: quero não Tonha porque pode fazer mal a coalhada que vou comer mais tarde.
Sávio, belo conto para um medico desdobrar veLhos costumes que os ruralistas levam pras cidades.Abraco.
ResponderExcluirSávio:
ResponderExcluir1 de Agosto,
Dia Mundial da amamentação.
O leite materno é o melhor alimento
para os recém-nascidos.Ele possui
todas as vitaminas e proteinas,nescessárias para a alimentação do bebê,protegendo-o contra doenças.Cada mãe prodduz o leite mas apropiado para o seu filho.
Quanto ao CONTO DO MUGIDO adorei,lembrei d+ o meu tio tirando leite,uma narrativa completa de uma ordenha.
DR.Sávio em Agosto vou ficar em V-Alegre uns 5 dias,talvez nos encontramos.
Dr.Sávio, até eu estou a pensar se devo continuar a tomar leite em pó, rsrsrs; maravilhoso! esse conto do mogido, parabéns. Abraço Fatima.
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