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"Ultrapassa-te a ti mesmo a cada dia, a cada instante. Não por vaidade, mas para corresponderes à obrigação sagrada de contribuir sempre mais e sempre melhor, para a construção do Mundo. Mais importante que escutar as palavras é adivinhar as angústias, sondar o mistério, escutar o silêncio. Feliz de quem entende que é preciso mudar muito para ser sempre o mesmo".

Dom Helder Câmara


sexta-feira, 26 de agosto de 2011

SEXTA DE TEXTOS - Sávio Pinheiro

SABORES E TABUS

APRESENTAÇÃO

Ao expor a temática de “Sabores e Tabus” não poderia deixar de citar, daí a homenagem aos protagonistas do poema, um fato ocorrido no sítio de meus avôs paternos. Num sábado de julho, o seminarista Antônio, que gozava férias no sertão, apeou o seu cavalo alazão, amarrando-o fortemente em uma das colunas de madeira que seguravam o alpendre daquela acolhedora casa.
- Tia Francisca! – Bradou o futuro Padre Vieira. – Estou morrendo de fome, o que temos para comer, aqui?
Dona Francisca Rodrigues de Freitas, feliz por rever o filho de seu grande amigo e compadre Vicente Vieira, respondeu: - Temos uma panela de coalhada, aí na mesa. Sente-se e coma!
O esfomeado estudante, vestido numa batina preta, deglute vorazmente aquele delicioso alimento em colheradas suculentas. Sem dar tempo de pensar, fala novamente o padreco: - Dá para a senhora cozinhar alguns ovos caipiras para mim, pois ainda estou com bastante fome. – Espantada com o pedido, mas já imaginando que o Antônio bebera, e sem encontrar uma saída satisfatória naquele momento de terror, concorda em colocar uma chaleira de água para ferver.
Nesse meio tempo, chegando da roça, entra o seu esposo Louso, que ao lhe ver realizando aquela tarefa, retruca: - Para que tantos ovos cozidos de uma vez, Francisca. Está havendo festa, nesta casa?
Ela, em pânico, constrangida com aquela situação, e na certeza que iria provocar uma catástrofe gastronômica, responde-lhe com convicção:
- É pra acabar de matar o padre!


No sítio Lagoa Seca,
No sopé de grande serra
Viveu distinta família,
Que a cultura desenterra,
Trazendo àquela ribeira
Uma verve pioneira
De sobreviver da terra.

Vasta Serra dos Cavalos
O horizonte, escondia,
Dando àquele lugarejo
Isolamento e magia,
Mas a sua evolução
Nascia no coração
De quem, por lá, residia.

Ali viveu minha avó,
Aluna da natureza,
Que se formou com o mundo
Esculpindo a sua certeza,
Acreditando no mito
Sem consultar nada escrito,
Vivendo na sutileza.

Também, naquele recanto,
Nasceu o Padre Vieira
Criando-se com os chás
De capim santo e cidreira,
Pois, médico, não existia
E por lá, ninguém jazia
De bronquite ou espirradeira.

Dona Francisca encantou
O mundo com o seu saber
Falando para o seu neto
Que, apesar, de médico ser,
Que fazer muita mistura
Dava medonha tontura
De gente, se arrepender.

Falava sempre pra Louso,
O seu fiel companheiro,
Que banana com café
Matava muito ligeiro.
Por causa da congestão,
Que dava no coração
Do patrão ou do roceiro.

Tomar leite e chupar manga
Era assinar a sentença,
De sofrer amargamente
Devido à grave doença,
Que não tardava a chegar
Para logo lhe matar,
Independente da crença.

Quando a febre se abrigava
Um banho, só, mataria.
Um mergulho num açude
À tumba, te levaria.
Até mesmo uma neblina,
Quando, mansinha, se inclina
Vitimar-te, poderia.

Mil conselhos, ela dava,
Ao longo da longa estrada:
- Cuidado com curimatã,
Chouriço, pinha, coalhada,
Com pato, peba, tatu,
Na mistura de urucu,
Qualquer carne carregada.

Quando via uma mocinha
Tinha-lhe grande atenção,
Não lhe deixando chupar
Um pedaço de limão,
Pois sabia do perigo
Que ardia, feito castigo
Durante a menstruação.

Sai de mim, abacaxi,
Que acabei de tomar leite!
Pois não pretendo ficar
Num hospital, como enfeite,
Para não ter que morar
E jamais ter de deixar
Uma vida de deleite.

Tomar chuva, no inverno,
Após beber café quente
Era o mesmo que cavar
Uma cova, certamente,
Ficando um cidadão fraco
Até morar num buraco
Após morrer, de repente.

Ela falou, certa vez,
De maneira verdadeira:
- Só coma frutas, do pé,
Nunca, de uma geladeira,
Pois a comida gelada
Poderá, de uma lapada,
Acamar-te numa esteira.

Porém, à colher o fruto
Confirme a temperatura;
Pois, se o mesmo, estiver quente
Sentirás grande gastura
Podendo levar-te à morte
E acabar a tua sorte,
Enfeitando a sepultura.

Outro dia, uma senhora,
Fez um grave experimento
Comendo ovo com manga
Num dia muito agourento.
Como estava menstruada,
Um corrimento emanava
Com odor bem fedorento.

No resguardo, tomar banho,
Após comer um pirão
Era o mesmo que parar
Um carro na contramão.
Se ela desobedecesse
E se, um prato, comesse
Morreria de sezão.

Durante crises nervosas
Dona Francisca dizia:
- Tome água com açúcar,
Reze pra Santa Luzia,
Pois com fé e devoção
Você abre o coração
Saindo dessa agonia.

O garoto com sarampo,
A manga, não comeria,
Nem um bom ovo estrelado,
Pois, na certa, morreria.
Não podia tomar banho,
Um fato bastante estranho,
Que a sua vida, marcaria.

Comer chouriço, doente,
Tendo um unheiro inflamado,
Era o mesmo, que ficar,
Numa guerra, desarmado.
Tendo, um dos olhos, doendo
E o outro, o pus, escorrendo
Deixava o par remelado.

Pra ela, o leite mugido,
Era um remédio certeiro,
Que curava tosse braba,
Pereba, gripe e cobreiro,
Ajudando o agricultor
A curar sua grande dor
Sem buscar um raizeiro.

A entrecasca da aroeira
Para a cicatrização,
Quando a infusão permeia
A grotesca inflamação
Vinha curar corrimento,
Outro grande sofrimento,
Que fazia assombração.

O gergelim segurava
O fruto da criação,
O chá de boldo servia
Pra não dar constipação,
Mastruz com leite sarava
E o doente se curava
De gastrite e de torção.

A babosa era pra tudo,
Que você queira saber:
Curava câncer, diarreia,
Não lhe deixando morrer.
Curava-lhe o mau olhado,
Peito aberto e ôi quebrado
Sem fazê-lo padecer.

Pra concluir, eu exponho
Um pensamento frequente,
Que simbolizava a vida
Naquele mundo valente:
- Quem tem dente chupa cana,
Quem não tem, come banana -
Versejava alegremente.

Fim.

8 comentários:

  1. Dr. Savio.

    Parabens.

    O Sexta de Texto de hoje está espetacular. Coalhada com ovos juntos e aferventados se não matou o padre pôs risco a todos da familia.

    Abraços.

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  2. É...

    Doenças comuns e curas maravilhosas com a medicina caseira.

    Belo texto Dr. Sávio

    Abaços do

    Vicente Almeida

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  3. Por conta desse conhecimento de raízes do Dr. Sávio foi que uma vez
    ele me receitor folhas e raízes.
    Grande médico.
    Grande poeta.
    Grande amigo conterrâneo.

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  4. É...

    Eu queria dizer abraços, mas a velocidade de digitação engoliu o "R" e não vi. Registre-se a correção.

    Vicente Almeida

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  5. ESSE ANO A SECRETARIA DE CULTURA NA FESTA DO PADROEIRO SÃO RAIMUNDO TRÁS O TEMA SABORES E SABERES DA NOSSA TERRA.NESSA POESIA DO SÁVIO SE VER AQUI UMA GRANDE DEMONSTRAÇÃO DO SABER DO NOSSO POVO.COM A NATURAL SABEDORIA DOS PERSONAGENS, E A DELE DE TRADUZIR ESSA SABEDORIA EM VERSOS. CONCORD COM O MORAIS. ESSA CESTA CABE TEXTOS

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  6. Maravilhoso! gosto muito do seu jeito de escrever Dr.Sávio: as vezes brejero,outras contundente, sagaz;mais sempre com bom humor, e do nosso jeitinho pé no chão. Abrçao fraterno. Fatima Bezerra.

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  7. Dr. Sávio Pinheiro

    Essas superstições tem ajudado muito, aqueles que dependem simplesmente da fé para a cura de seus males. Também sou oriundo dessa cultura e dela guardo boas recordações.
    Lembro-me quando criança em Icó estava chovendo e Dona Fransquinha de seu Luis Paulino, o João Dino deve conhecer, trabalhava no DNER e morava a época na Rua São Geraldo, hoje mora ao lado da igreja nova do Senhor do Bomfim. Bem, Wilson, chamávamos Uito queria tomar banho na chuva, mas também queria saborear seu delicioso café com pão, introduzido diretamente na xícara. Foi quando D. Fransquinha resolveu nosso problema sem ferir a tradição:
    vocês podem tomar o café com o pé na água que não faz mal não!
    E assim ganhamos as ruas de Icó tomando banho de chuva! Uito foi morto assassinado por defender um amigo. Saudade...

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  8. Pois é pessoal, Sávio retratou um pouco da sua avó. Eu, particularmente fiquei orgulhosa com essa homenagem. Obrigada meu sobrinho, você me emocionou e deixou um marco de saudade da minha MÃE! E, sendo de Várzea Alegre, ela não escondia a sua sabedoria.Nos meus escritos tenho um capítulo entitulado"COISAS DE DONA FRANCISCA".
    Um abraço.
    Fideralina

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