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"Ultrapassa-te a ti mesmo a cada dia, a cada instante. Não por vaidade, mas para corresponderes à obrigação sagrada de contribuir sempre mais e sempre melhor, para a construção do Mundo. Mais importante que escutar as palavras é adivinhar as angústias, sondar o mistério, escutar o silêncio. Feliz de quem entende que é preciso mudar muito para ser sempre o mesmo".

Dom Helder Câmara


segunda-feira, 18 de junho de 2012

E eu virei poeta - Por Rubem Alves


Era uma vez um galo que acordava bem cedo todas as manhãs e dizia para a bicharada do galinheiro: Vou cantar para fazer o sol nascer…

Ato contínuo subia até o alto do telhado, estufava o peito, olhava para o nascente e cantava seu belo canto. E ficava esperando. Dali a pouco a bola vermelha começava a aparecer, até que se mostrava toda, acima das montanhas, iluminando tudo. O galo se voltava, orgulhoso, para os bichos e dizia: Eu não falei?

E todos ficavam boquiabertos e respeitosos ante o poder tão extraordinário conferido ao galo: cantar para fazer o sol nascer. Ninguém duvidava. Tinha sido sempre assim.

Havia grande ansiedade entre os moradores do galinheiro.
E se o galo ficasse rouco?
E se esquecesse da partitura?
Quem cantaria para fazer o sol nascer?
O dia não amanheceria?
E por causa disso cuidavam do galo com o maior cuidado.
Ele, sabendo disso, sempre ameaçava a bicharada, para ser mais bem tratado.

Olha que eu enrouqueço! – dizia. E todos se punham a correr, para satisfazer as suas vontades. O galo, por sua vez, tinha enormes oscilações emocionais.  Pela manhã, depois de o sol nascer, sentia-se como um deus, onipotente e admirado e não era para menos.  Mas à noite vinham a depressão e a ansiedade. Não posso perder a hora, dizia. Se eu não cantar, o sol não vai nascer. E não conseguia dormir um sono tranquilo.

Isto, na verdade, acontece com todas as pessoas que se acham poderosas assim. Paira sempre sobre elas a ameaça de fim do mundo.

Aconteceu, como era inevitável, que certa madrugada o galo perdeu a hora.
Não cantou para fazer o sol nascer.
E o sol nasceu sem o seu canto.
O galo acordou com o rebuliço no galinheiro.
Todos falavam ao mesmo tempo.

O sol nasceu sem o galo… O sol nasceu sem o galo…

O pobre do galo não podia acreditar naquilo que seus olhos viam: a enorme bola vermelha, lá no alto da montanha. Como era possível?  Teve um ataque de depressão ao descobrir que o seu canto não era tão poderoso como sempre pensara.  E a vergonha era muita.

Os bichos, por seu lado, ficaram felicíssimos.
Descobriram que não precisavam do galo para que o sol nascesse.
O sol nascia de qualquer forma, com o galo ou sem o galo.

Passou-se muito tempo sem que se ouvisse o cantar do galo, pois estava deprimido e humilhado.
O que era uma pena: porque é tão bonito.
Canto de galo e sol nascente combinam tanto.
Parece que nasceram um para o outro.

Até que, numa bela manhã, o galinheiro foi despertado de novo com o canto do galo.  Lá estava ele, como sempre, no alto do telhado, peito estufado. Está cantando para fazer o sol nascer? – perguntou o peru em meio a uma gargalhada. Não, – respondeu o galo. Antes, quando eu cantava para fazer o sol  nascer, eu era doido varrido. Mas agora eu canto porque o sol vai nascer. O canto é o mesmo. E eu virei poeta.

Rubem Alves

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