Em 1993 meu pai, Mundinho Gonçalo, encontrava-se de passeio na cidade de Quixadá no Sertão Central do Ceará, onde eu e minha família morávamos. Pela manhã costumava dar umas voltas pela praça central daquela cidade e um dia ouviu uma longínqua gargalhada muito espalhafatosa e que lhe pareceu familiar. Em função da distância, não tinha a certeza de quem seria o autor, portanto, resolveu aproximar-se do personagem e não teve dúvidas. aquele sujeito esguio, moreno, muito alegre, apesar da idade e dos cabelos brancos, no meio de uma roda de amigos, era Manoel de Venâncio. Aproximou-se mais ainda do mesmo, puxou conversa para se cerificar melhor através do tom de voz e, por fim, proferiu a sublime indagação: Você é o Manoel de Venâncio? Ele de pronto respondeu. Sim, e o Senhor quem é? Meu pai respondeu: eu sou Mundinho Gonçalo, do Sanharol em Várzea Alegre, aquele que viajava com você, tangendo burros com meu pai Antonio Gonçalo Araripe nas décadas de 1930 e 1940. O encontro depois de 40 anos foi uma surpresa para os dois. Abraçaram-se, conversaram, relembraram coisas... causos..., perguntas, respostas. Por fim, despediram-se, com o compromisso de voltarem a se encontrar na mesma praça para outras conversas e mais fofocas.
Chegando em casa, meu pai contou-me o ocorrido e eu logo me prontifiquei de visitar a casa do Sr. Manoel, como de fato o fiz. Não foi muito difícil encontrar a casa humilde num dos arredores da cidade. Conhecemos a sua humilde família e tivemos um ligeiro panorama de como teria sido sua trajetória, desde que saíra de Várzea Alegre, no início da década de 40 do século passado, para nunca mais voltar. Daquele dia em diante, com a presença do meu pai ou do meu sogro, que também era de Várzea Alegre, voltei por diversas vezes à casa do Sr. Manoel de Venâncio, que na cidade era conhecido por “Bigode”, em função do seu vasto conjunto de pelos faciais. Tive a oportunidade de colher dele uma vasta e dramática história, que vou tentar resumi-la:
Manoel de Venâncio tinha origem em uma família humilde do Sítio Inharé – Várzea Alegre – CE e na juventude viajara auxiliando meu avô Antonio Gonçalo Araripe com tropas de burros pelas bandas de Crato, Farias Brito, Campos Sales, Cedro e Iguatu. Meu pai e outros irmãos, à época com idades equivalentes à do companheiro, também participavam dessas viagens que, embora cansativas e demoradas, eram recheadas de comentários, brincadeiras, conversas, etc. O Manoel de Venâncio tinha uma característica ímpar entre os demais, por proferir uma gargalhada espalhafatosa e característica. Além de muito magrelo, era só o que tinha de diferente. Era extremamente tímido e não se ouvia falar de quaisquer desvirtuamentos ou até mesmo de cobiças por parte do referido personagem.
De repente, Manoel passou a trabalhar como ajudante de carretos (carreteiro) na cidade de Várzea Alegre e, em um dos seus primeiros trabalhos nessa atividade, surgiu logo um comentário um tanto escabroso pela cidade e circunvizinhanças: “O Manoel de Venâncio estava sendo acusado por um determinado comerciante da cidade”. Supostamente havia dado “sumiço” a um saco de açúcar. Ele, como sempre, foi o último a saber da estória. Decepcionado e, por não ter meios de fazer frente ao que lhe estavam acusando, resolveu ir embora. Aproveitou uma viagem no carro do patrão para a vizinha cidade de Cedro e, chegando lá, avisou ao motorista que não mais voltaria a Várzea Alegre. O companheiro ainda tentou intervir, inclusive, passando-lhe um agrado que o patrão havia lhe entregue, para ajudar no restante da viagem. O Manoel de Venâncio recusou a oferenda. Falou que não precisava. Iria embora praticamente com a roupa do corpo e uns poucos trocados no bolso. Foi a Recife; voltou ao Ceará para alistar-se em uma frente de serviço em Banabuiú, que à época era distrito de Quixadá, onde trabalhou até a conclusão do grande açude público, que hoje dá nome a cidade que se originou da antiga vila. Depois foi morar em Quixadá – CE, onde voltou à atividade de carreteiro junto às usinas de beneficiamento de algodão.
Nos contatos que tive com o Sr. Manoel sempre indagava se o mesmo não tinha interesse de voltar a Várzea Alegre. Procurando incentivá-lo, comentava que muitos de seus amigos e parentes o aguardavam por lá, dentre eles, personagens como Barela, Chico de Negão, Chico de Jorvino, Zé de Martins, entre outros. Ele, com o olhar distante, demonstrava ansiedade, mas, sempre relutante, afirmava não ser interessante, pelo fato de ter perdido o contato com familiares e também porque muitos deles, inclusive sua mãe, já não existiam mais. Mas no seu semblante sempre me foi passado a verdadeira causa de não ter desejo de voltar a sua terra natal: A amargura e a falta de oportunidade de passar às pessoas o que verdadeiramente ocorreu naquele episódio em que lhe foi imputada a responsabilidade pelo desaparecimento de um saco de cereal em um armazém onde trabalhava como carreteiro.
Este texto do Antonio Gonçalo de Sousa é um resgate da historia. Aqueles que vivem no conforto do desenvolvimento e da modernidade não sabem que nas décadas da ocorrência os produtos chegavam as suas casas através do trabalho sofrido dos carreteiros em lombos de animais. Daqui também escoavam os produtos e de fora traziam os que não eram produzidos no lagar.
ResponderExcluirMas, o que me chamou atenção foi o fato que levou Manuel Venâncio a se retirar de sua terra. Um homem com a personalidade firme, formada em princípios morais e bons costumes ser acusado desta forma causa-lhe transtornos e grandes desgostos.
Obrigado Antonio por mais esse resgate interessante de nossa historia.
Abraços.