No
Brasil imperial, o imperador exercia privativamente o Poder Moderador,
com a assessoria do Conselho de Estado. Graças a ele, o Primeiro Reinado
configurou-se como monarquia absoluta. As desordens da Regência
conduziram à instauração do parlamentarismo e à restauração do Poder
Moderador, que passou a funcionar como "árbitro dos conflitos da elite"
(José Murilo de Carvalho), estabilizando o Segundo Reinado. A decisão do
STF de suspender o mandato de Eduardo Cunha, "uma das mais
extraordinárias e corajosas da história político-judiciária do Brasil"
(Joaquim Barbosa), ilumina uma crise institucional aguda. É um indício
de que o governo transitório de Temer viverá à sombra de um novo Poder
Moderador, desta vez exercido coletivamente pelos juízes da corte
suprema.
A
sentença do STF é "extraordinária" num sentido preciso, talvez
vislumbrado por Barbosa: representa uma nítida violação das
prerrogativas do Congresso e, portanto, da regra de ouro da separação de
Poderes. Mas o adjetivo "corajosa" serve apenas como ornamento retórico
de um ato judicial politicamente motivado, que se destina a arbitrar os
"conflitos da elite".
Só
os eleitos podem dispor do mandato dos eleitos –eis o princípio
democrático que a corte suprema decidiu ignorar. O Congresso, mas não o
STF, pode deliberar impeachment da presidente– e, ainda, o de um juiz do
próprio STF. Mesmo o afastamento provisório de Dilma depende de duas
deliberações parlamentares sucessivas. (Coisa diferente é a impugnação
judicial da chapa eleita, que não se confunde com cassação de mandato.)
Em
nome do mesmo princípio, a Constituição atribui exclusivamente ao
Congresso a prerrogativa de cassar mandatos parlamentares. Até a mera
confirmação da prisão em flagrante de um parlamentar exige autorização
de sua Casa, isto é, da Câmara ou do Senado. Para circundar a letra
constitucional, o STF recorreu ao subterfúgio da suspensão temporária do
mandato de Cunha, fundamentada em interpretação ousada, ultraliberal,
do Código de Processo Penal. Assim, alçando-se acima das fronteiras
legais, o STF decretou uma excepcionalidade, que forma um embrião de
jurisprudência. Depois de Cunha, será a vez de Renan?
Tempos
anormais. A Câmara não reagirá à usurpação de poder pois sofre os
efeitos devastadores da desmoralização do Poder Legislativo infligida ao
longo do reinado lulopetista. Nesses 13 anos marcados pelo "mensalão" e
pelo "petrolão", a maioria parlamentar associou-se ao Executivo em
pactos de natureza mafiosa. Os mandatos populares converteram-se em
passaportes para a delinquência política e a criminalidade comum.
"Quando dizem que nossas instituições são fortes, isso cheira a piada",
atirou o efêmero ministro da Justiça Eugênio Aragão, empossado com a
missão impossível de implodir o que ainda resta de institucionalidade.
Nesse diagnóstico (e só nisso!), ele tem razão: é sobre uma paisagem de
ruínas que se ergue o novo Poder Moderador.
O
STF conta com o apoio de uma opinião pública farta do personagem
nefasto que seus pares protegem –e, ainda, com o elogio de um PT preso à
lógica de sua própria narrativa embusteira sobre o impeachment. Mas,
sobretudo, ampara-se nos interesses do governo adventício, a quem presta
um serviço estratégico.
Temer
monta um extenso arco governista, congregando o PMDB, os sócios menores
do lulopetismo e a oposição. Ele terá esmagadora maioria parlamentar,
mais que suficiente para cassar Cunha. Mas, agindo preventivamente, o
STF soluciona o impasse, libertando-o do imperativo de mobilizar essa
maioria num rumo capaz de produzir insanáveis fissuras entre as máfias
políticas pacificadas, entregues à orgia da redivisão de feudos na
administração pública. Sob aplausos gerais, o "árbitro dos conflitos da
elite" anestesia a sociedade, postergando as rupturas inevitáveis.
(Publicado na "Folha de S.Paulo", sábado 07-05-2016)
A maior herança da Monarquia era a decência, a honradez e os exemplos dos Andradas, nascidos do berço. Herança melhor não haveria para o Brasil tão carente dessas "matérias primas" nos dias atuais.
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