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"Ultrapassa-te a ti mesmo a cada dia, a cada instante. Não por vaidade, mas para corresponderes à obrigação sagrada de contribuir sempre mais e sempre melhor, para a construção do Mundo. Mais importante que escutar as palavras é adivinhar as angústias, sondar o mistério, escutar o silêncio. Feliz de quem entende que é preciso mudar muito para ser sempre o mesmo".

Dom Helder Câmara


sábado, 28 de dezembro de 2019

Madre Feitosa, uma unanimidade -- por Carlos Rafael Dias (*)


     Uma frase, atribuída ao dramaturgo Nelson Rodrigues, é recorrentemente usada para expressar a necessidade do contraditório nas relações sociais:  toda unanimidade é burra!

     Tido como um dos maiores nomes da crônica brasileira, incluindo aquela inspirada no mais profundo cotidiano urbano, Nelson Rodrigues é muito pouco contestado quando se trata dessas contundentes tiradas. Mas, no objetivo que me leva hoje a escrever, tenho que discordar do genial escritor. Às vezes, a unanimidade é um pertinente qualitativo para se referir a pessoas extraordinariamente belas e boas. É o caso de madre Feitosa, uma unanimidade pela sua irretorquível passagem terrena, espelhada na mais pura e legítima filosofia de vida cristã.

      Tive o privilégio de conviver com a madre e por ela ser ajudado. Recém-casado, recém-formado e desempregado, bati-lhe à porta para entregar um minguado curriculum vitae. Almejava ser professor do colégio por ela fundado e dirigido. Na sua sabedoria e generosidade, madre Feitosa talvez tenha percebido que eu não estava ainda devidamente preparado para assumir o magistério. O contrário talvez tivesse encerrado minha carreira de professor precocemente. Ela não me contratou para o que eu pretendia, mas, lembro bem, o que ela me disse naquela ocasião, com sua voz serena e angelical: “você vai ficar na biblioteca por enquanto, preparando-se para na hora certa ser um bom professor”. O trabalho de bibliotecário era a mais leve das funções do colégio. Passei lá o restante do ano, estudando e preparando-me para o magistério, o qual se tornou realidade logo depois, quando me tornei professor universitário.

     Outra dádiva que dela recebi ocorreu em um dos momentos mais cruciantes da minha vida, quando enviuvei. E vieram na forma de palavras sábias que serviram de bálsamo para a dor e ânimo para reconstruir a vida.

      Tenho diversas outros motivos para devotar-lhe reconhecimento, admiração e gratidão, a exemplo do dia em que, depois de ouvir pacientemente minhas reclamações a respeito dos dissabores de um cargo de confiança que exercia, ouvi dela as palavras que faltavam para que eu tomasse a crucial decisão de não mais assumir tais funções: “tem cargos que são verdadeiras cargas”.

     Hoje madre Feitosa transcendeu, depois de uma longa, profícua e bondosa existência, deixando a humanidade órfã de suas caridades, do seu amor e da sua dedicação incondicional ao próximo. Entretanto, o sentimento que se percebe nos depoimentos e tributos que se multiplicam nos meios de comunicação, não é de tristeza, mas de júbilo, pela certeza de seu súbito regresso ao Supremo.

      Que ela deixará uma lacuna difícil de preencher, não resta dúvida. Mas, essa existência material é transitória e o seu maior desafio é cumprir a missão tão simples e ao mesmo tempo tão complexa de fazer o bem, amando o próximo e contribuindo para tornar o fardo terreno mais leve.

      Madre Feitosa, sempre terna e agora eterna, dobrou esta meta.

(*) Carlos Rafael Dias, professor do Curso de História da URCA e sócio do Instituto Cultural do Cariri

Um comentário:

  1. Todas as homenagens póstumas que se façam representam muito pouco para a importância do legado de Madre Feitosa - Parabéns Carlos Rafael pelo seu sentimento de gratidão.

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