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"Ultrapassa-te a ti mesmo a cada dia, a cada instante. Não por vaidade, mas para corresponderes à obrigação sagrada de contribuir sempre mais e sempre melhor, para a construção do Mundo. Mais importante que escutar as palavras é adivinhar as angústias, sondar o mistério, escutar o silêncio. Feliz de quem entende que é preciso mudar muito para ser sempre o mesmo".

Dom Helder Câmara


sexta-feira, 26 de abril de 2019

Ferrolho - Por Dr. JFlavio Vieira

Conheciam Cassiano Gadelha como um varão bíblico. Casou ainda novinho com Dona Cacilda e não perdeu tempo. Rápido formou um escrete de futebol de salão que evoluiu para de futebol society e, esportivamente, só descansou quando montou dois times: vinte e dois jogadores. Houve anos em que Dona Cacilda empinou dois buchos. Os meninos puseram-se a crescer em Matozinho e a diferença de idade entre eles fazia-se tamanha que os primeiros netos de Cassiano eram mais velhos que os últimos filhos.

Pouco a pouco, puseram-se a ganhar o mundo, a procurar o destino que precisa ser traçado por cada um a golpes de machado. Cassiano e Dona Cacilda demoraram a ficar sozinhos: Destino inexorável de qualquer casal neste mundão de meu Deus. Já velhos, no entanto, beirando os oitenta, viram-se por fim solitários, buscando fazer com que tantas lembranças preenchessem o casarão hoje vazio.

Gadelha possuía uma qualidade difícil de encontrar em outros da sua geração. Os matrimônios naquela época, perfaziam atos meramente administrativos. Ainda não se havia inventado o amor romântico: casava-se para reprodução e, escolhendo-se a dedo, tentava-se manter o patrimônio construído por muitas gerações. Talvez, por isso mesmo, fossem tão frequentes os enlaces com alto grau de consanguinidade. A mulher, mera educadora de filhos, limitava-se as funções caseiras e burocráticas.

O homem mantinha economicamente o ninho e buscava prazer na senzala ou no bordel. Gadelha por incrível que possa parecer, fazia-se uma exceção à regra. Crescera e multiplicara, mas ninguém nunca soube de qualquer escapadela, qualquer gambiarra do velho Cassiano. Era homem de um ninho só. Os amigos da mesma geração costumavam chama-lo de “Ferrolho”, explicavam o apelido: ele passara a vida toda metendo no mesmo buraco e nunca se cansara. Esta rara qualidade pressentiram-na a chusma de filhos e a esposa, e, por isso mesmo, tinham Cassiano na mais alta consideração.

Com os anos passando, as brasas do amor arrefecendo pouco a pouco e se transformando em cinzas, por incrível que possa parecer, esta intransigente fidelidade de Gadelha começou a apresentar alguns imperceptíveis efeitos colaterais. Dona Cacilda, depois da menopausa, viu suas pétalas ultimas da juventude murcharem numa velocidade alarmante. Aos sessenta, sugada por tantos filhos, transformara-se numa anciã decrépita e enfermiça. Mergulhara, precocemente, na idade do condor: reumatismo para tudo quanto é lado. Cassiano, ao contrario, parecia um touro miúra. Trabalhava como um jovem e mantinha um vigor físico e sexual impressionante.

O problema estava, justamente, na sua parceira de tantos e tantos anos. Se na juventude o relacionamento intimo nunca lhe trouxera um prazer maior, agora, com as limitações da velhice, o acasalamento passou a ser uma verdadeira tortura para Dona Cacilda. Nunca quis conversar isso com o marido, até respeitando sua incondicional fidelidade. Com o agravamento da tortura chinesa, no entanto, criou coragem e falou com o Gadelha. O parceiro de toda uma vida, não compreendeu, fez cara feia e ainda andou intrigado por mais de uma semana. O Pior é que a intriga, milagrosamente, se desfazia á noite, entre os lençóis e, pela manha, Cassiano vestia, mais uma vez, aquela carona de fazer cobrança e mantinha a carranca até anoitecer.

Desesperada, Cacilda, com toda dificuldade deste mundo, confidenciou a uma filha o seu sofrimento. A menina, penalizada com a situação constrangedora da mãe, contou tudo aos seus irmãos mais velhos. Reunidos, estes resolveram montar uma estratégia para confortar a mãe, sem, claro, trazer atropelos ao pai exemplar que era Cassiano. Procuraram-no na roça e puxaram-no para um particular. O mais velho, então, utilizando as regalias de primogênito, expôs a situação : Papai, nós viemos falar com o senhor, porque a mamãe anda muito adoentada e nós combinamos com o medico e com o Padre Acelino e eles disseram que ela não tem mais condições de fazer nenhum calamengau. Viemos combinar com o senhor que ainda está novão e fogoso para deixar ela de mão. Mamãe aceitou: agente pode arranjar uma namorada novinha em folha para o senhor!

Os filhos até imaginaram que o velho ficaria feliz com a nova aquisição. Poderia, por fim, prevaricar na velhice e recuperar o tempo perdido. Os caminhos do desejo, no entanto, são totalmente sinuosos e imprevisíveis. Cassiano empertigou-se e sacou as clausulas algo emboloradas do seu antigo contrato matrimonial : Dá certo não, meu filho! Trato é trato! Ela jurou nos pés do padre que era na saúde e na doença. Quem não pode com o pote não pega na rodilha.

Depois, eu tou muito velho e meio borococho! Já tou acostumado com o alvo meio desbotado de sua mãe. Com minha espingarda velha e enferrujada sei a quantidade de chumbo e pólvora, conheço o molejo do cão e os segredos da alça de mira.

Ta certo que já não acerto na mosca, mas também o tiro nunca dá tabuleta e nunca sai pela culatra. Se vocês arrumaram um alvo novinho em folha, eu já num tendo experiência, é capaz da espingarda velha bater Catolé ou disparar um tiro tão grande que afoloze e lasque em quatro toras o cano da soca-soca e acabe só com a coronha na mão!

5 comentários:

  1. Que expressão!

    "Dá certo não, meu filho! Trato é trato! Ela jurou nos pés do padre que era na saúde e na doença. Quem não pode com o pote não pega na rodilha". Grande Cassiano - Ou melhor grande Dr. Flavio.

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  2. Lamento pela dona Cacilda; mas trato é trato. Cassiano é bom! Parabéns Dr. Flávio, cada vez melhor. Abraço carinhoso e fraterno. Fátima

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  3. Valeu Dr. Flávio. maa com esse causo do fevolho. Ficou certo que não existe nenhuma semelhança de Matorzinho com V. Alegre. porque
    lá quem tem essa fidelidade é chamado de tuberculoso. porque come num prato só.
    Me mande notícias do meu amigo poeta e seu primo Audenizio Correia. Eu tenho algumas coisas para ele que já era cobrado pelo seu pai José Odmar
    Abraço quase conterrâneo.
    Mundim do Vale

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  4. Corrigindo.
    Dr. Flávio. Eu me descuidei e mandei a mensagem no endereço do meu filho Diogo.

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  5. agradeço ao morais pela paciência em arrancar este texto do Matozinho e publicar. Abraço ao Pra frente, à Nair, ao Mundim , à Fátima e ao diogo por terem apreciado o texto. Quanto à busca do mundim por Audenízio, soube que ela anda em São Paulo e meio adoentado. Uma memória fabulosa e o maior contador de hist´prias entre todos os vieiras da minha geração.

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