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"Ultrapassa-te a ti mesmo a cada dia, a cada instante. Não por vaidade, mas para corresponderes à obrigação sagrada de contribuir sempre mais e sempre melhor, para a construção do Mundo. Mais importante que escutar as palavras é adivinhar as angústias, sondar o mistério, escutar o silêncio. Feliz de quem entende que é preciso mudar muito para ser sempre o mesmo".

Dom Helder Câmara


quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

Um Conto de Natal


A mulher ia, estrada afora, no carro importado. Asfalto novinho e pretinho. Chovia. De repente o estouro e o desequilíbrio do carro que sai catando cascalho da beira do barranco. Bate aqui, bate ali, até que pára, depois de entrar por uma estrada esburacada de chão.
Depois do susto, a mulher chora. Nervosa e trêmula, desce e vai ver o estrago. Um amassado aqui, outro ali, nada muito grave, a não ser o pneu estourado. Olha para baixo, olha para cima da estradinha. Ninguém aparece. Noite chegando. Bem que tenta trocar o pneu, mesmo tomando chuva. Força pouca. Traquejo nenhum. Desiste. O desespero toma conta dela, que entra no carro e se entrega ao pranto chorando mágoas passadas. Aí, lá da baixada, aparece o vulto. Um homem a cavalo. Vem chegando e vê que algo estranho aconteceu com o carro. Pára. Desce calmamente do cavalo e bate no vidro. A mulher, remoendo medo e esperança encara o homem. Alto, moreno, barba por fazer, roupa suja, mãos cheias de vincos provocados pelos calos... Ela abre apenas uma fresta no vidro.
- Pode abrir moça! Carece ter medo não! A senhora qué ajuda?
A mulher abanou a cabeça dizendo que sim.
- Ondé que fica o pneu?
Ela fez sinal que era lá atrás, no porta-malas, e acionou o botão. O homem pega o pneu, acha chave e macaco e começa a fazer a troca, adivinhando tudo por não entender nada. Homem acostumado com cavalo e roça não entende muito dessas máquinas não. Foi por isso que o macaco, mal colocado, escapou, comprimindo a mão esquerda dele contra uma pedra fazendo-a sangrar. A mulher teve dó e, pesarosa, abriu a porta.
- Tome aqui um lenço de papel! Limpe o sangue da mão!
- Não, moça! Podexá!
E passou a mão na calça suja, limpando-a do sangue teimoso, dispensando o lenço de papel cor-de-rosa.
- Moça! Pode entrá no carro! Fica aqui não! Tá choveno e tá frio! Lá dentro tá quentinho! Vai pra lá!...
Foi aí que ela observou que o homem estava todo ensopado pela chuva e, consequentemente, tremia de frio. Ela entra no carro, abre um pouco mais o vidro e começa a procurar assunto.
- Como é seu nome?
- É Tarcisio, moça!
- O senhor mora onde?
- É bem perto onde moro, meia légua daqui!
A mulher ficou sem saber se era longe ou perto. Observou o tempo, cada vez mais escuro. Noite chegando e a fome também.
- Sou da capital, senhor Tarcisio. Resolvi viajar sozinha. Nunca tinha feito isso. Meu marido deixei lá... nós brigamos...
A mulher parou de falar. Tomada repetinamente pela emoção, os soluços tomaram-lhe as palavras. Vez por outra ela se acalmava, sua dor doía menos e continuava o seu desabafo. Parece que precisava contar para alguém a sua história. Foi assim que Tarcisio ficou sabendo que o marido tinha muito dinheiro e muitas posses. E Tarcísio viu que ele tinha também uma mulher muito bonita. E ficou sabendo que não eram felizes. O marido vivia mais fora de casa do que dentro, envolvido com negócios, com os amigos e com as amantes. E foram as amantes o principal motivo da briga, desta vez. Tarcísio só ouvia, até que terminou de trocar o pneu. A mulher convidou-o para entrar no carro. Queria conversar mais.
- Não, moça, posso não! Tô sujo e intranguido de frio. Tenho que ir embora. A noite já chegô e minha mulher me espera!...
- Sua mulher, senhor Tarcísio, o senhor é casado?
- Sim, moça! E muito bem casado, com a graça de Deus! E óia só como é o mundo. Enquanto a senhora foge do seu marido eu vô pra junto da minha mulher... Tem duas semanas que a gente tá longe um do outro... Tô morrendo de saudades!... Eu tava trabalhando...
- O senhor faz o quê, senhor Tarcísio?
- Trabaio na roça, moça! Planto arroz, milho e feijão. No meio planto abóbora, quiabo e melancia... Na beirada planto batata doce, inhame e mandioca... Dá pra despesa!...
A mulher entendeu que Tarcísio tinha pressa. Queria ir ver sua amada. Era noite de Natal.
- Por que o senhor não deixa seu cavalo aí e vem comigo? Levo-o onde o senhor quiser!
- Não, moça! Depois do Natal vorto pra roça. E é nesse cavalinho que eu vou. Se ele ficá aqui, arrisco perdê o bichim...
- Senhor Tarcísio, quero pagar pelo que o senhor me fez. Quanto lhe devo?
- Quanto deve? Nada não, moça! Não fiz isso por dinheiro!
- Mas, senhor Tarcísio, empatei mais de uma hora da sua vida! Se não fosse o senhor, eu estaria aqui, correndo risco de vida... Além do mais, o senhor até machucou a mão! Pode dizer o preço que eu pago!
- Não, moça! A senhora não tem que pagá nada! A gente quando faz o bem, não deve pedir nada em troca. Só deve querer que o bem continue sendo feito, sem parar! É assim que penso, moça!
A mulher tirou cinco notas de cem reais e ia entregá-las ao Tarcísio. Ele já tinha montado no cavalo.
- Óia, moça! Faz o seguinte: se eu lhe fiz bem e a senhora gostô, passe o bem para frente! Faça outra pessoa feliz!
E tocou o cavalo, sumindo noite adentro. Os olhos da mulher voltaram a ficar cheios de lágrimas. Não mais de tristeza. De emoção. Ela descobriu, ali naquele canto de mundo, vindo de um matuto sem estudos, de quem tivera medo no início, a maior lição de vida. Passar o bem para frente...
- Ah, se todo mundo fizesse assim!...
E ligou o carro. Entrou no asfalto, disposta a achar um lugar onde comer alguma coisa. Rodou pouco e encontrou uma lanchonete de beira de estrada. Entrou e foi para uma mesa, com um monte de olhos de homens presos nela. Mulher tão distinta e tão bonita num lugar desses!... Uma garçonete veio atendê-la. Ela pensou o que haverá de menos sujo por aqui? Um refrigerante, talvez. E para comer? Uma fruta por certo...
- Quero um guaraná! Que frutas vocês têm?
- Fruta? É ...
- Sim, fruta! Já é tarde para comer outra coisa. Prefiro fruta!
- Olha, moça! Aqui não tem fruta. Se a senhora esperar um pouquinho, tenho umas bananas. Moro bem ali, no fundo da lanchonete...
- Isto. Isto mesmo que eu quero! Você busca para mim? Bananas com guaraná!...
A garçonete esboçou um sorriso simpático e foi atrás do pedido. Trouxe o guaraná e saiu para buscar as bananas. Aí foi que a mulher viu que a moça tinha certa dificuldade para andar. Andava devagar. Observou bem e descobriu o motivo. Gravidez. A garçonete deveria estar lá pelo oitavo mês de gravidez. Usava um vestido simples, coberto por um avental que disfarçava o tamanho da barriga. No rosto, um sorriso meigo e cativante era gentilmente distribuído a todos que lhe dirigiam a palavra.
A mulher ficou comovida observando a garçonete, cansada e grávida, naquela noite de Natal, atendendo com um sorriso a quantos lhe procuravam. Pensou que dificuldade teria na vida essa pobre moça para ter que se submeter, já no final da gravidez, a um trabalho desses. Perdeu até a fome.
Quando a garçonete voltou, encontrou na mesa, debaixo do copo, ainda com um resto de guaraná, cinco notas de cem reais. E um bilhete, num lenço de papel cor-de-rosa: Obrigada pelo atendimento. Fique com esse dinheiro. É uma ajuda para o seu bebê que está chegando. Seja feliz e faça outras pessoas felizes. Passe a felicidade para a frente!
A platéia que, atenta, observava o que acontecia naquela mesa, saiu do suspense quando a moça abriu-se num sorriso largo. E, aos poucos, cada um foi procurando o seu canto, sempre recebendo da futura mãe uma boa noite e um Feliz Natal.
A garçonete faz inúmeros planos do que fazer com aquele dinheiro chegado em tão boa hora, quando mais necessitava, estando o filho por nascer. Enquanto isso começa a cuidar dos tantos copos, pratos e talheres que ainda tem para recolher, lavar e enxugar... Mas, para completar seu presente, o patrão também assumira o espírito natalino.
- Deixe o trabalho para amanhã. Vá dormir. Feliz Natal!
O quarto da moça era nos fundos da lanchonete. Ela sai feliz, sorrindo, sentindo-se leve, embora com tanto peso na barriga. Abre a porta devagarzinho para não fazer barulho. Toma um banho e vai para a cama, pensando no dinheiro e no bilhete que a mulher deixara. Aquela mulher tivera uma inspiração divina para saber o quanto ela e o marido precisavam daquele dinheiro. Com os raios de luz que entra pela janela, olha embevecida para o rosto do marido. Moreno, barba por fazer. A mão esquerda, fora do cobertor com um ferimento recente.
A garçonete beija-o docemente e diz, num sussurro:
- Tudo vai ficar bem. Obrigada por me fazer feliz, meu amor! Eu te amo, Tarcísio!
Autor: Rubem Braga
Postado por: Glória Pinheiro


2 comentários:

  1. Glória,

    Parabéns pela postagem! Esse conto nos revela uma grande lição de vida.

    Abraços

    Magali

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  2. Maria da Gloria.

    Um conta muito bonito. felizmente, nesse mundo indiferente em que vivemos existem muitos "Tarcisios" a começa pelos que escrevem e postam contos como este para despertar nas pessoas o sentimento de amor, humanismo, caridade entre as pessoas e presensa de Deus. Parabens e feliz natal.

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