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"Ultrapassa-te a ti mesmo a cada dia, a cada instante. Não por vaidade, mas para corresponderes à obrigação sagrada de contribuir sempre mais e sempre melhor, para a construção do Mundo. Mais importante que escutar as palavras é adivinhar as angústias, sondar o mistério, escutar o silêncio. Feliz de quem entende que é preciso mudar muito para ser sempre o mesmo".

Dom Helder Câmara


sexta-feira, 18 de março de 2022

A República proclamada por acaso - Por Carlos Chagas.



O saudoso e incomparável Hélio Silva, dos maiores historiadores brasileiros, titulou um de seus múltiplos livros de "A República não viu o amanhecer". 

Contou em detalhes,  fruto de muita pesquisa, que a República foi proclamada por acaso. As lições daquele episódio não devem ser esquecidas. Vale lembrá-las com outras palavras e um pouquinho de adendos que a gente colhe com o passar do tempo, junto a outros historiadores  e, em especial, pela leitura dos jornais da época.

Desde junho que o primeiro-ministro do Império era o Visconde de Ouro Preto. Vetusto, turrão, exprimia os estertores do chamado "poder civil" da época, muito mais poder do que civil, porque concentrado nas mãos da nobreza e dos barões do café, com limitadíssimas relações com o cidadão comum. 

O Brasil havia saído da Guerra do Paraguai com cicatrizes profundas, a começar pela dívida com a Inglaterra, mas com novos personagens no palco. O principal era o Exército, composto em  maioria por cidadãos da classe média, com ênfase para os menos favorecidos. Escravos aos montes também  haviam sido libertados para lutar nos pântanos e charcos paraguaios. Nobres  lutaram, como Caxias e Osório,  mas a maioria era composta daquilo que se formava como o  brasileiro médio. 

Ouro Preto, como  a maior parte da nobreza, ressentia-se daqueles  patrícios  fardados que começavam a opinar e a participar da vida política. Haviam sido peça fundamental na abolição da escravatura, em 1888.  Assim,  com o Imperador já pouco interessado no futuro,  o governo imperial tratou de limitar os militares. Foram proibidos de manifestações políticas, humilhados e   punidos, como Sena Madureira e tantos outros.

Havia, nos quartéis e em certos  círculos políticos,  um anseio por mudanças. Até o Partido Republicano tinha sido criado no Rio e depois em  São Paulo, mas seus integrantes estavam unidos por um denominador comum: República, só depois que o "velho" morresse, pois era queridíssimo pela população. E quem passaria a mandar no Brasil seria um estrangeiro, o Conde d'Eu, francês, marido da sucessora,  a princesa Isabel.

Cogitava, aquele poder civil elitista, de dissolver o Exército, restabelecendo o primado da Guarda Nacional, onde os coronéis e altos oficiais careciam de formação militar. Eram fazendeiros, em maioria. Os boatos ganhavam a rua do Ouvidor, no Rio, onde localizavam-se as redações de jornal.

Na tarde de 14 de novembro movimentam-se  um regimento e dois batalhões sediados em São Cristóvão. Com canhões e alguma metralha, ocupam o Campo de Santana, defronte ao prédio onde se localizava o ministério da Guerra, na região da hoje Central do Brasil. Declararam-se rebelados e exigiam a substituição do primeiro-ministro, que lá se encontrava com seus companheiros. Comandados por majores, estava criado  o impasse: não tinham como invadir o prédio, por falta de um chefe de prestígio,   mas não podiam ser expulsos, já que as tropas imperiais postadas nos fundos do ministério não se dispunham a atacá-los. 

O Secretário-Geral do ministério da Guerra era o marechal  Floriano Peixoto, que quando exortado por Ouro Preto a investir à baioneta  contra os revoltosos, pois no Paraguai haviam praticado  feitos muito mais heroicos, saiu-se com frase que ficou para a História: "Mas no Paraguai, senhor primeiro-ministro, lutávamos contra paraguaios..."
 
Madrugada do dia 15 e os majores, acampados com a tropa revoltada,  lembram-se de que ali perto, numa casinha modesta, morava o marechal Deodoro da Fonseca, há   meses perseguido pelo governo imperial, sem comissão e doente.  Dias atrás o próprio Deodoro recebera um grupo de  republicanos, com Benjamim Constant, Aristides Lobo e outros, aos quais repetira que não contassem com ele para derrubar o Imperador, seu amigo. 

Acordado, Deodoro ouve que dali a poucas horas Ouro Preto assinaria decreto dissolvendo o Exército. Não era  verdade, mas irrita-se, veste a farda e dispõe-se a liderar a tropa. Não consegue montar a cavalo, tão fraco estava. Entra  numa carruagem e acaba no pátio fronteiriço ao ministério da Guerra. Lá, monta um cavalo baio e invade o prédio, com os soldados ao lado, todos  gritando "Viva Deodoro!  Viva Deodoro!" Saudando-os com o  agitar o boné na mão direita,  grita "Viva o Imperador! Viva o Imperador!".  Apeia  e sobe as escadarias, para considerar Ouro Preto deposto. Repete diversas vezes : "Nós que nos sacrificamos nos pântanos do  Paraguai rejeitamos a dissolução do Exército." Estava com febre de 40 graus.   O Visconde, corajoso e cruel, retruca que "maior sacrifício estava  fazendo ele ouvindo as baboseiras de Vossa Excelência!"    Foi o limite para Deodoro dizer que estava todo mundo preso.

O marechal já ia voltando, o sol ainda não tinha  nascido  e os republicanos, a seu lado, insistem  para que aproveite a oportunidade e  determine o fim do Império. Ele reluta.   Benjamin Constant lembra que se a República fosse proclamada naquela hora, seria governada por um ditador. E o ditador seria ele, Deodoro. Conta a lenda que os olhos do velho militar se arregalaram, a febre passou e ele desceu ao andar térreo, onde montou outra vez o cavalo baio. A tropa recrudesceu com o "Viva Deodoro! Viva Deodoro!" e ele agradeceu com os gritos de  "Viva a República! Viva a República!" Os militares desfilaram pelas ruas do centro do Rio. Deodoro foi descansar em sua casa e,  à tarde,  meio surpreso com o que tinha  feito, recebeu homenagem da Câmara de Vereadores do Rio. Confirmou a mudança e assinou os primeiros  decretos repiblicanos, levados por Rui Barbosa e outros.
Aristides Lobo escreverá depois em suas memórias que "o povo assistiu bestificado a proclamação da República."

Preso no Paço da Quinta da Boa Vista, com a família, o Imperador teve 48 horas para deixar o Brasil.  Deodoro quis votar uma dotação orçamentária  para que subsistissem no exílio.  D. Pedro II recusou, levando apenas pertences pessoais. 

A República estava proclamada.

4 comentários:

  1. Morais:

    Um excelente resgate histórico.

    99,9% da "brava gente brasileira"
    desconhece este lance que representou o primeiro de uma série de golpes militares (outros se sucederiam ao longo dos anos da República)na história do Brasil.

    Autêntica quartelada que rasgou a nossa primeira Constituição ( a que mais durou, 1824-1889) quando o Brsil vivia num regime sério, honesto e copnduzido por estadistas preparados e respeitados no Brasil e no exterior.

    Deu no que deu.

    O Brasil hoje não passa de uma republiqueta, apesar de ser um país rico...mas com grande parte de sua população vivendo na miséria e no "mar de lama" da corrupção que a imprensa noticia todo dia.

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  2. O brasileiro assiste pacificamente os fatos mais importantes da patria acontecerem com se fossem uma simples brincadeira.

    Quem não lembra o plano Collor. Enquanto o Ministro Bernardo Cabral passava as mãos nas pernas da Ministra Zelia Cardoso, ela sorteava num copo o valor a ser confiscado do poupador brasileiro.

    Depois o povo saiu a rua para tirar Collor do Poder. A duras pena consegue. Eis que esse mesmo povo o elege agora com seus votos senador. Turma-se com um negocio desse.

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  3. Assim nasceu a republiqueta de meia pataca que nas últimas décadas já acolheu na presidência gente do porte Lula, Dilma Roussef e Jair Bolsonaro.

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  4. O Brasil ainda vice as consequências desse pesadelo "mal acordado" que implantou a República no nosso país.

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