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"Ultrapassa-te a ti mesmo a cada dia, a cada instante. Não por vaidade, mas para corresponderes à obrigação sagrada de contribuir sempre mais e sempre melhor, para a construção do Mundo. Mais importante que escutar as palavras é adivinhar as angústias, sondar o mistério, escutar o silêncio. Feliz de quem entende que é preciso mudar muito para ser sempre o mesmo".

Dom Helder Câmara


domingo, 20 de novembro de 2011

Doença, espetaculo e poder - Reinaldo Azevedo.

É lamentável a espetacularização do câncer, vazada como cenas da vida doméstica, protagonizada por Luiz Inácio Lula da Silva. O deputado Ricardo Berzoini (SP), ex-presidente do PT, como demonstrei aqui, não esperou muito tempo e acabou revelando certamente mais do que pretendia o partido. Segundo escreveu no Twitter, Lula fez barba e cabelo e deixou o bigode para as eleições de 2012. É indecente.

Quem é da área sabe que Ricardo Stuckert é profissional dos bons. Era o fotógrafo oficial de Lula quando este era presidente e migrou com ele para o instituto. Já apontei aqui a influência da estética “Benetton”, by Oliviero Toscani, em algumas de suas fotos. Não foi diferente desta vez. O resultado, como peça de propaganda, é competente. Mas é disto que estamos falando: de propaganda. Assim como Toscani expunha um doente de Aids com a família chorando à sua volta para vender camiseta e moletom (ver o post que escrevi ontem sobre a Benetton), Lula usa a sua doença para, como comprova Berzoini, conquistar votos para o seu partido.

Profissionais da fotografia teriam muito a falar a respeito — necessitando de um tantinho de coragem, claro, para enfrentar a patrulha. Um resultado como o divulgado requer ajuste de luz, muitas dezenas de fotografia, até que se escolham “aquelas”. Há tudo nas imagens divulgadas, menos aquilo que se tentou vender ao público: o flagrante e a espontaneidade. Aqueles olhares para o nada — para o futuro da humanidade? — resultam de muitos cliques.

E agora falarei com a “autoridade” de que tem barba, muuuita barba, mais do que eu gostaria. Aquilo é uma cena preparada. O casal atua como modelo — ele, no seu papel predileto: Lula; ela, no dela: mulher de Lula. Por que afirmo isso? A parte mais chata da barba (além do pescoço; por que barba no pescoço, meu Deus?) fica ali na fronteira do lábio inferior, área já raspada e escanhoada, como se nota. O mesmo se pode dizer da papada. Tudo lisinho. E há a questão óbvia: a assessoria de Lula deslocou Stuckert até a casa do ex-presidente, mas não teve o bom senso de chamar uma profissional para lhe raspar cabeça e barba, operação que sempre comporta algum risco? Tenham paciência.

Fico cá pensando nos muitos candidatos a hagiógrafos de Lula, que exaltaram, nos primeiros dias da doença, como é mesmo?, a sua “transparência”, como se esta já não tivesse sido turvada quando gravou um vídeo, tendo o mesmo Stuckert por trás da câmera, marcando um encontro com os “eleitores” em algum palanque. Não sou assim tão inocente, não é? Lula é o homem público mais em evidência do país. É admirado por milhões de pessoas. É natural que haja curiosidade sobre a sua saúde e que muitos torçam para que seja bem-sucedido em seu tratamento. Assim, é aceitável que se divulguem imagens suas e que estas sejam selecionadas e tal.

Mas vamos devagar! É preciso haver algum decoro nisso! Lembrei aqui outro dia que Lula chorou copiosamente diante da Câmera de Duda Mendonça na campanha eleitoral de 2002 ao falar da primeira mulher, morta no parto, e do filho natimorto. Elaborava uma narrativa muito distinta de entrevista que havia concedido anos antes à revista Playboy sobre o mesmo assunto. Diante daquele espetáculo patético em 2002, lembro-me de ter escrito um texto no extinto site Primeira Leitura cujo título era: “Ele não tem limites”. Tudo bem pensado, espetacularizar a própria doença para obter benefícios políticos para o seu partido não é, assim, o seu auge. Chegou mais longe com a mulher e o filho mortos.

Não, senhores hagiógrafos! Isso não é transparência, mas obscurantismo. E explico por quê. Lula torna o processo político refém de sua biografia — ou melhor: o processo político se deixa capturar por suas lendas pessoais. Na Presidência, suas batatadas não podiam ser criticadas sem que pesasse a sombra do preconceito. Agora, quando ele faz óbvia exploração política de sua doença, considera-se de mau gosto apontá-lo. É preciso que Ricardo Berzoini o faça. Até a recomendação,  em tom de ironia, para que vá se tratar no SUS, ainda que a tanto ele não esteja obrigado, é tomada como grave ofensa, “baixaria”, um verdadeiro vilipêndio!

O processo político trata Lula como expressão do sagrado. Já ele próprio nunca se importou em ser bastante profano, como se vê mais uma vez.

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