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"Ultrapassa-te a ti mesmo a cada dia, a cada instante. Não por vaidade, mas para corresponderes à obrigação sagrada de contribuir sempre mais e sempre melhor, para a construção do Mundo. Mais importante que escutar as palavras é adivinhar as angústias, sondar o mistério, escutar o silêncio. Feliz de quem entende que é preciso mudar muito para ser sempre o mesmo".

Dom Helder Câmara


sexta-feira, 15 de março de 2013

Sem exagero - Por Luis Fernando Veríssimo.


Fizeram um encontro meu com o Abel Braga quando ele estava treinando o Internacional, e descobrimos uma coincidência. O primeiro jogo que ele viu no Maracanã, ainda garoto, ao lado do pai, foi o último que eu vi, já nada garoto, perto de me casar. Santos e Milan, novembro de 1963.

Até então eu não perdia jogo do Botafogo, da seleção ou do Santos no Maracanã. Morava no Leme e pegava o ônibus Leme-Triagem, atravessava a pé a Quinta da Boa Vista e ia para a arquibancada. Sim, o Santos jogava suas partidas decisivas no Maracanã. O Maracanã enchia para ver o Pelé. Mas no jogo que o Abel, eu e uma multidão vimos o Pelé não jogou. O herói da noite foi o Almir. O Pelé da noite foi o Almir.

Volta e meia, vem a discussão. Pelé era mesmo tudo que se diz dele? O Maradona era melhor? O Messi é melhor?

Meu testemunho não interessa. Ele reinou quando já havia videotape. Seus feitos estão bem documentados. Você não precisa recorrer à literatura para contar às crianças como era o seu futebol — ao contrário das façanhas de gente como Ademir e Zizinho, que ficaram na memória dos velhos e em filmes desbotados, nenhuma das duas coisas muito confiável.

E o grande mérito de Pelé é que ele resiste ao videotape completo. Se tivesse ficado só em filme, só os seus grandes momentos estariam registrados. Já o videotape completo traz tudo: o passe errado, o tombo sentado, a chuteira desamarrada. E Pelé resiste aos detalhes. Ele era bom até amarrando a chuteira.

Com o futebol aconteceu um pouco do que aconteceu com a guerra: quanto mais realista a sua reprodução, mais difícil romanceá-la.

Quando só se viam cenas de guerra em quadros épicos em que até os cadáveres colaboravam na composição, ela podia ser glorificada sem contestações, salvo as estéticas. Fora as gravuras de Goya, não se conhece um quadro sobre a guerra, antes da invenção da fotografia, que não a exaltasse.

A fotografia primitiva roubou da guerra a cor e a composição artística, o filme e o tape dinamizaram o horror, o zoom destacou o detalhe. Ainda há quem ame a guerra, mas nunca mais a percepção dela foi a mesma.

E o futebol também mudou, o que só aumentou a dificuldade em julgar jogadores antigos pelas precárias imagens que ficaram deles e pelo que contam — com o inevitável toque romântico do exagero — os que os viram jogar. Algumas das grandes reputações do passado sobreviveriam aos cinco no meio e à marcação no campo todo de hoje?

Pelé pegou o começo do futebol sem espaço. Não só se impôs como deixou o exemplo de como sobreviver no sufoco. A extrema objetividade (nunca se viu um drible do Pelé apenas pela satisfação do drible, era sempre um espaço conquistado), a antecipação da jogada seguinte antes mesmo de a jogada presente começar, a solidariedade, a simplicidade. Melhor do que Maradona, melhor do que Messi, e dou fé.

Um comentário:

  1. Não há como comparar. Primeiro o homem, conceitos morais, eticos e bons costumes. Pelé conviveu com o prestigio do mundo sem que nunca perdesse a cabeça. Nunca enveredou, por exemplo, para o mundo das drogas.

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