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"Ultrapassa-te a ti mesmo a cada dia, a cada instante. Não por vaidade, mas para corresponderes à obrigação sagrada de contribuir sempre mais e sempre melhor, para a construção do Mundo. Mais importante que escutar as palavras é adivinhar as angústias, sondar o mistério, escutar o silêncio. Feliz de quem entende que é preciso mudar muito para ser sempre o mesmo".

Dom Helder Câmara


terça-feira, 27 de fevereiro de 2024

A morte do Boi mansinho - Por Dr. Floro Bartolomeu da Costa

Certo amigo (Delmiro Gouveia) ofereceu ao Padre Cícero um bonito garrote, mestiço de zebu, por ser raça ainda não conhecida naquele meio. Na impossibilidade de criá-lo dentro da cidade, confiou o tratamento do animal a um negro, de nome Zé Lourenço, residente no sítio "Baixa Dantas", do município do Crato.

Esse preto, quando ali chegou, já era "Penitente em sua terra", isto é, fazia parte de uma associação oficiosa, fundada pelos antigos missionários e ainda hoje tolerada por um ou outro padre.
Depois das perseguições religiosas ao Padre Cícero, começaram a fazer circular que Zé Lourenço, não tendo mais vida de penitente, abusava da crendice do povo, apresentando o "touro como autor de milagres".

Então se dizia que a urina do animal por ele era distribuída como eficaz medicamento para todas as moléstias, que dos seus cascos eram extraídos fragmentos para, em pequenos saquinhos serem pendurados ao pescoço, como relíquias, à moda do Santo Lenho; que todos se ajoelhavam em adoração diante do touro e lhe davam a beber mingaus e papas; enfim, tudo que uma alma perversa possa conceber.

Quando se procurava apurar a verdade, ninguém sabia informar, a começar pelos proprietários do sítio onde Zé Lourenço residia e trabalhava como rendeiro.

Os padres, não sei sob que fundamento, repetiam essas banalidades. O Padre Cícero, não obstante estar convencido da mentira, por diversas vezes tentou vender o animal; mas, não só Zé Lourenço, como também cavalheiros respeitáveis o impediam, fazendo sentir que além de ser inverdade o que espalhavam, o animal era um bom reprodutor e estava melhorando a raça do gado ali. Por isso mesmo todos os grandes e pequenos, o tratavam com carinho, mesmo porque era muito manso, donde veio a ser conhecido por "Mansinho".

Aconteceu que em um dos meses do ano atrasado, na ladeira do Horto, se deu um conflito entre um doido e alguns indivíduos  conhecidos por "Penitentes" e o inspetor policial do quarteirão.
Havendo ferimentos, foram presos os implicados por crime de natureza leve.

De acordo com o Padre Cícero, procurei, por meios brandos, conseguir acabar com a prática dos atos dos "Penitentes". Os próprios "Penitentes" concordaram com a minha resolução entregando-me, para serem queimadas, as vestes apropriadas que ainda possuíam e as respectivas cruzes, as quais mandei queimar no cemitério.

Eles me informaram que às vezes, praticavam aquele ritual pelo hábito de suas terras, com o consentimento dos vigários e na intenção de sufragarem as almas do Purgatório, o que realmente não me era estranho. Alguns amigos aconselharam-me nessa ocasião que eu desmascarasse os que acusavam Zé Lourenço de prática de feitiçaria. Respondi-lhes nada poder fazer, em virtude de ser ele morador no município do Crato.

Não sei quem informou o mesmo Zé Lourenço de que eu ia mandar prendê-lo.     O negro, supondo exata a notícia, no terceiro dia apareceu em minha residência. Foi quando o conheci pessoalmente. Mandei prendê-lo, e, apesar das suas declarações, dele obtive a promessa de ir morar no Juazeiro, para evitar os boatos.

Ao mesmo tempo fiz vir o touro, e, de acordo com o padre, vendi-o para o corte, sob a condição de ser abatido pelo comprador em frente à cadeia. Abatido o touro em frente à cadeia, em plena rua, às duas horas da tarde, perante centenas de pessoas, de acordo com o Padre Cícero, foi a carne conduzida para o açougue público, onde também foi vendida toda ela, não chegando para todos que quiseram comprá-la, visto ser da melhor qualidade.

Ao chegar a notícia, no Crato, de que Zé Lourenço não mais voltaria ao sitio Baixa Dantas, indo fixar residência no Juazeiro, recebi diversos telegramas, cartas e visitas de homens respeitáveis daquela cidade vizinha, empenhando-se para que eu não retirasse Zé Lourenço do seu sítio, tal a falta que ele fazia aos proprietários, pelo auxílio que lhes prestava nos trabalhos de agricultura, e em outros préstimos.

O pedido, porém, que calou mais no meu espírito foi o do capitão João de Brito, cunhado do nosso colega Deputado Hermenegildo Firmeza, o dono da terra da qual ele, Zé Lourenço, era rendeiro.
Consenti na volta do negro ao seu sitio, e assim terminou a história "das mil e uma noites" do touro "Mansinho".

Interrogando esses cavalheiros que se empenharam pela volta do negro, pelo motivo de não desmentirem os que o caluniavam, me responderam todos sempre assim terem procedido; mas que os boatos eram para desmoralizar o Padre Cícero e, dessa maneira, não podiam evitá-los.

Zé Lourenço, que não freqüentava o Juazeiro, depois disso começou a freqüentá-lo aos domingos para ali fazer sua feira, e, durante o tempo que eu lá estive, nesses mesmos dias, almoçava comigo, em minha casa, onde se hospedava.

2 comentários:

  1. Fico maravilhado com histórias desse naipe. Sou um devorador de livros que contam histórias de cidades e de fatos passados. Os livros são as verdadeiras máquinas do tempo pois nos transporta só passado e nos faz personagens dos acontecimentos passados.

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  2. Jozinaldo Freitas - Historias de um passado recente que marcou as civilizações e que a verve atual faz questão de desconhecer. Abraços.

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