Um
dia, ouvindo uma saudação minha a um ex-professor, ela confidenciou a
amigos que gostaria que fosse eu o escolhido par saudá-la em alguma
solenidade. Achou, em meio a minhas palavras laicas, mas banhadas de
poesia, que havia alguma coisa de sagrado nelas, afinal a poesia é
sempre um tipo de prece, de oração .
O tempo passou, encontramo-nos tantas e tantas vezes, pelas ruelas da vida e, infelizmente, o momento da saudação nunca chegou.
Hoje, ela partiu e as palavras já não ressoam e já não parecem ter força ou sentido.
A rigor, diante de uma vida tão longa e pródiga, nem deveríamos ter
motivos para blues e tristezas, mas para celebração pela dádiva de uma
existência tão fulgurante. Nossa madre foi uma criatura ímpar.
Profundamente espiritualizada, dirigiu os destinos de muitas gerações
de caririenses, sem ranço, com profunda compreensão dos conflitos de
idade, usando sempre o amor como mola mestra do educar.
Soube acompanhar os tempos e suas mudanças, vezes cataclísmicas e
estonteantes, sem estardalhaço, com os pés fincados sempre no chão da
sua religiosidade, mas com os olhos fitos no futuro. Lembro que
convidado para fazer uma palestra no seu colégio, sobre Gravidez na
Adolescência, alguns professores preocuparam-se sobre a necessidade de
apresentar imagens anatômicas e meios anticonceptivos, temendo mexer com
sua susceptibilidade.
Madre Feitosa assistiu a toda a apresentação com uma
tranquilidade monástica, em nenhum instante demonstrou qualquer
excessivo pudor ou mostrou-se incomodada com as fotografias e as
imagens projetadas. Sabia que, no fundo, o amoral reside na alma das
pessoas e nas suas disformes relações com o mundo e não em frágeis
palavras ou meras ilustrações.
Sempre imaginei que a possibilidade de melhorarmos o planeta
depende do nosso esforço em ampliar o sentido de família. Quando o homem
conseguir entender que somos parte de uma imensa parentela, muito além
do simples clã sanguíneo, e que nossa casa chama-se Terra, que somos
todos irmãos, independentemente de cor, de raça, de reino, de religião,
de condição social, a sobrevivência sustentável do planeta estará
assegurada. Nossa Madre não teve filhos biológicos, mas tornou-se uma
invejável matrona bíblica, pelo simples fato de adotar milhares de
alunos como rebentos seus.
Cuidou-os e orientou-os utilizando o mais poderoso instrumento
pedagógico: a compreensão substituindo a punição; o diálogo aberto ao
invés do autoritarismo; a força do exemplo antepondo-se ao vazio das
palavras. Não bastasse isso, nossa Madre Feitosa fez-se o esteio
espiritual de muitos pais e amigos, orientando vidas, mostrando
caminhos, confortando e amparando pessoas nas fases mais tenebrosas de
suas trajetórias. Próximo dela tínhamos a certeza de que sua
espiritualidade fluía das regiões mais abissais da sua alma. Não era um
simples verniz, um mero adereço. Era uma pessoa de muitas certezas e
poucas dúvidas. A autoridade saltava do seu sorriso, das suas palavras
doces, pausadas e medidas. E foi, certamente, esta centelha interior
que a manteve lépida, atuante, vívida por quase um século.
Queria ter dito todas estas palavras antes da solenidade final a que
todos um dia estaremos sujeitos. Mas teimo em encontrar no meio do
desapontamento da perda, motivos de celebração e de regozijo. Turva-me a
tristeza da impermanência, mas louvo e congratulo-me com vida por nos
ter privilegiado por tanto tempo com sua presença. Destituídos da
couraça material, sobrevivemos nas obras que edificamos.
Alguns esculpem na lâmina das águas, poucos na dureza magmática das
rochas. Madre Feitosa burilou almas, lavrou na seara do espírito. Seu
sorriso e seu doce continuarão vivos , fulgurantes em todos aqueles que
um dia dela se acercaram. A luz com que ela iluminou nossos caminhos era
um mero reflexo da centelha do divino que dela se irradiava.
Crato, 28/12/2019
Dr. José Flávio fala com a propriedade de quem conhece, de quem viveu a grandeza dessa nobre e bem-feitora do cariri.
ResponderExcluir