Dona Siderina, este é um dos únicos consensos da cidade, possui a língua mais afiada de Matozinho. Ligua dessas de se usar em cartucheira, de se pensar, muitas vezes, em exigir aumento no estoque de soro antiofídico. Sua casa é uma espécie de radio, de amplificadora da vila: não tem dia em que não apareça furo de reportagem! O noticiário é fornecido, estrategicamente, por temas, em ordem crescente de picardia: os boletins periódicos daqueles que estão no pé da cova, com o rigoroso agravamento de suas mazelas e macacos, as fraudes e roubos dos grandes da vila; os crimes de correr sangue; os namoros mais arrochados; com detalhes das apalpadelas repetidas e dos escândalos; as prenhas solteiras e, por, fim, à sorrelfa, sai a sempre atualizada lista das casadas que andam costurando pra fora. Siderina tem ainda um verdadeiro arquivo morto com o histórico minucioso de todos os escândalos da Vila, facilmente acessível e acessável, bastando um rápido toque no teclado da sua memória de elefante.
Algum ano atrás se pensou até que a Vila perderia de vez o seu Arquivo Municipal. Segundo a regra, um filho de uma filha de Siderina lhe deu um tremendo desgosto, fazendo opções sexuais esdrúxulas e difíceis de serem digeridas numa cidadezinha tão minúscula.
Algum ano atrás se pensou até que a Vila perderia de vez o seu Arquivo Municipal. Segundo a regra, um filho de uma filha de Siderina lhe deu um tremendo desgosto, fazendo opções sexuais esdrúxulas e difíceis de serem digeridas numa cidadezinha tão minúscula.
Todos os matozenses imediatamente gritaram: língua falou, cu pagou! Mas Siderina, mais que de repente, recobrou-se do golpe e voltou com a carga e a saliva todas, para o temor de alguns e a curiosa alegria de muitos. A historia que se segue me narrou Lilian Wite Fibe de matozinho, quando, um dia, não sei a que propósito, lhe indaguei sobre as sempre animadas festas da Padroeira da cidade, a Imaculada Santa Genoveva.
A Trezena de Santa Genoveva, celebrada no mês de Setembro, enchia e vila de pompa e de orgulho. A praça única de Matozinho, capitaneada por sua Matriz, via-se atapetada de barracas, de carrocinhas e de carrosséis. Enquanto as beatas tiravam a trezena, os homens embebiam-se em cachaça e os meninos chupavam roletos de cana e rodopiavam nos parques de diversões. O Sagrado e o profano se mesclavam ludicamente como, alias, em tudo nesta vida, naquele ano, no entanto, me conta Siderina, havia um clima tenso na vila, um ar de pânico, de previsível sobressalto. Dias antes, tinham assassinado, a troco de nada, o velho Ptolomeu Gaudêncio, conhecido amavelmente por Pitó. Ele era comerciante prospero na cidade, tinha montado o primeiro Mercantil daquelas brenhas: uma bodega metida à besta, como definiam todos.
A família estava inconformada e já havia ameaçado por todos os lados: ia haver vingança, a coisa não ia ficar assim. O criminoso tinha fugido a tempo, mas possuía muitos familiares em Matozinho, inclusive filhos, que, certamente, poderiam, de uma hora para outra, saldar a divida de sangue. Toda festa naquele ano, transcorria neste clima de medo e expectativa: todo mundo preparado para, no primeiro estampido pegar o gramear num urgente e salvador pernas pra-que-te-quero.
Os temores iam se diluindo com o passar dos dias. Santa Genoveva parece que tinha apaziguado os ânimos, com sua doçura. Chega então o ultimo dia da trezena, o ponto culminante da festa. A igreja estava superlotada de fieis fervorosos que depositavam na padroeira muitas das suas derradeiras esperanças. Lá fora até os parques aguardavam o termino da reza, para voltar as suas atividades. As barracas contavam apenas com os mais renitentes deodatos da cidade, que pastoreavam as mesas, como soldados de Pompéia. Perto do templo, Juvenal Fogueteiro atiçava os fogos que céleres iam aos céus e pipocavam ritmadamente, em homenagem a santa padroeira. De repente, deu-se a tragédia. Um dos fogos de Juvenal, desobediente, cortou o firmamento em vôo rasante, e no telhado do templo onde se celebrava o ato religioso.
Quando o fogo explodiu, a acústica da capela amplificou o estrondo para uma platéia já sobressaltada com as possibilidades de vingança. Não bastante isso, um sem vergonha, aproveitando o eco do estampido, gritou no meio da Igreja: Por favor, não mate o homem!
Era a faísca única que faltava para o estouro da boiada. Foi um rapa-pé de tal monta que só é possível dar uma idéia clara do que aconteceu naqueles terríveis instantes, utilizando a língua de sabre de Dona Siderina: Meu Senhor, a coisa foi feia! O velho Vanderico, que já tem mais de noventa, diz que rodou esta igreja mais de dez vezes, nunca com menos de seis cabras na corcunda!
Pedro Engembrado, quem há mais de dez anos pede esmola na praça, lembrou que foi um dos primeiros a escapar do liquidificador em que se transformou a capela e só teve uma idéia do que acorreu, quando ao chegar em casa, sua mulher lhe perguntou onde é que ele tinha deixado a cadeira de rodas: tornara-se sua companheira inseparável há mais de uma década.
Padre Velderico, depois de rastejar como cobra, nadar num mar de braços e cabeças, dar varias bunda-canastras e plantar bananeiras por mais de cinco vezes, afirmou, após a catástrofe, ter escapado passando direto da sacristia para o adro da igreja. Quando lhe perguntaram como conseguira o feito, já que existe um muro enorme, separando as duas áreas, ele foi categórico: rapaz, quando eu passei lá não tinha muro não.
No outro dia, as faxineiras fizeram um levantamento total dos espólios no campo de batalha As portas da igreja estavam abrindo nos dois sentidos: para dentro e para fora. Acharam setecentos e cinqüenta e seis sapatos, mas nenhum perfazia um par, com outro qualquer.
Coletaram ainda, vinte e cinco chapas inferiores, seis olhos de vidro, quatro muletas, uma perna de pau, oito fundas de hérnia, um marcapasso de coração, quarenta e três armações de óculos, sem qualquer sinal das lentes.
E concluiu Dona Siderina: Só para você ter uma base do que foi a fricção naquela balburdia: quando varreram o chão, as mulheres ainda apuraram dezessete litros de botão.
Mais uma do Dr. Flavio para o bom gosto dos leitores. Texto um pouco longo, porem duvido que a leitura não prenda a atenção do leitor até o seu final.
ResponderExcluirparabens Dr. Flavio.
Postei esse texto do Dr. José Flávio Vieira no meu face. O face excluiu alegou está fora dos padrões da empresa. Para onde o Brasil está seguindo.
ResponderExcluirMuito interessante e bom para se dar risadas...
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