Páginas


"Ultrapassa-te a ti mesmo a cada dia, a cada instante. Não por vaidade, mas para corresponderes à obrigação sagrada de contribuir sempre mais e sempre melhor, para a construção do Mundo. Mais importante que escutar as palavras é adivinhar as angústias, sondar o mistério, escutar o silêncio. Feliz de quem entende que é preciso mudar muito para ser sempre o mesmo".

Dom Helder Câmara


quinta-feira, 21 de junho de 2012

SEXTA DE TEXTOS - Sávio Pinheiro


UM ASININO NA PIA BATISMAL

Durante anos, um jovem profissional trabalhou em dois serviços médicos distintos. Dois hospitais semelhantes pertencentes a grupos políticos adversos. O esculápio utilizava mais as suas habilidades diplomáticas, que médicas para desenvolver em paz a sua labuta diária.  O leva e traz seria bem maior, não fosse a intervenção pacifista daquele pacato profissional.

O amante da medicina conseguia separar as águas, quando a turvação se fazia presente, no barulhento e tortuoso rio da vida, sem que as partes percebessem àquelas mirabolantes manobras. Ouvidos de mercador driblavam farpas trocadas sem direito, sequer, a ruborizar a sua face pálida. Durante anos, ele praticou mais a diplomacia do que a cirurgia.

Certa vez, numa sexta-feira, final de tarde, uma senhora com criança adentram no consultório. O médico exausto, após maratona clínica de quase dez horas, dá início ao atendimento pediátrico. A consulta, muito rápida, e isenta de sorrisos gratuitos termina com a mãe se retirando do recinto sem despedida solene. Coloca a receita em uma pequena bolsa e se retira rapidamente, com a fisionomia de que não valera à pena esperar tanto tempo naquele banco duro de cimento cinza. Em poucos minutos, os vultos desaparecem ao longe.

O profissional se retira com um semblante assustador. Sisudo, fácies triste, contemplativo, sai sem se despedir de seus colegas. Mais um dia havia se passado. A rotina, que já destruíra a sua atenção, virtude máxima da gratidão humana, lhe deixava exausto e deprimido. O riso fácil, sua mais sincera verdade, já não fluía como antes. A relação médico-paciente se esvaía de forma automática e não premeditada. Estava nascendo ali um novo distúrbio psiquiátrico, que os psicanalistas ainda não haviam desbravado.

Em casa, após um bom banho, ele olha as estrelas e as contempla. O Cruzeiro do Sul dá a sua graça. A quinta estrela visível, a pequenininha, leva-o a infância sem energia elétrica no colo dos pais. A lua cheia o reanima e uma estrela cadente o faz esquecer o interminável dia. O sono chega e ele procura o leito de colchão confortável e travesseiro sedoso. O dia amanhece.

Uma ducha quente o revigora e faz voltar o seu autêntico sorriso. O café fresquinho de aroma forte e com pouco açúcar demonstra que um novo dia está começando e que a vida volta ao seu eixo normal. O seu rosto se mostra mais jovem e menos áspero. Enfim, a textura da vida se evidencia sem problemas e inquietações.

O sábado se inicia. No outro hospital, ele recomeça a sua extenuante rotina. O cheiro agradável de seu perfume se mistura com o aroma da sala recém-arrumada dando um ar de leveza e tranquilidade. O SUS não parede mais tão assustador assim. De repente, uma senhora com criança adentram no consultório. O médico sereno, iniciando a sua maratona clínica, dá início ao atendimento pediátrico. A consulta, bem mais lenta, recheada de sorrisos gratuitos termina com a mãe se retirando do recinto, bastante satisfeita. Coloca a receita em uma pequena bolsa e se retira calmamente, com a fisionomia de que valera à pena esperar naquele banco duro de cimento cinza. De repente, ela para bruscamente e exclama:

- Isso é que é uma consulta médica bem feita... Diferente da que eu fiz, ontem à tarde, no ouro hospital, com aquele jumento batizado!

2 comentários:

  1. Dr. Sávio.

    O sistema de saúde brasileiro é cruel com o medico e com o paciente.

    Existe também o paciente que o seu atendimento depende muito de sua decisão politica no ultimo pleito. O hospital já só existe um porque o outro foi fechado.

    Então, se você votou na ultima eleição do agrado do medico você é bem atendido, se fez o contrario, só resta uma alternativa: chamar de jumento batizado.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Amigo Morais, esse fato foi verídico. Aconteceu em Cedro, há alguns anos. Mostra o quanto a sobrecarga profissional desumaniza o atendimento. Um abraço.

      Excluir