Páginas


"Ultrapassa-te a ti mesmo a cada dia, a cada instante. Não por vaidade, mas para corresponderes à obrigação sagrada de contribuir sempre mais e sempre melhor, para a construção do Mundo. Mais importante que escutar as palavras é adivinhar as angústias, sondar o mistério, escutar o silêncio. Feliz de quem entende que é preciso mudar muito para ser sempre o mesmo".

Dom Helder Câmara


sábado, 9 de julho de 2011

A DIVINA COMÉDIA - Canto XV - O Inferno - Por Vicente Almeida

Canto XV

Espírito de Brunetto Latini

Nós caminhávamos por uma das margens de pedra. Uma névoa pairava sobre o córrego mantendo o fogo longe dos diques que o separam do areão. A selva já ficara bem para trás (tão distante que, se eu olhasse para trás, tenho certeza que não mais a veria) quando surgiu um grupo de almas beirando o dique e nos fitando. Uma delas me reconheceu e se agarrou ao meu manto, gritando:

- Que maravilha!

Brunetto Latini segurando Dante
Ilustração de Gustave Doré

Eu, logo que senti que um espírito me segurava, olhei para as suas feições queimadas e, apesar de sua face tostada, não pude deixar de reconhecê-lo.

- Sois vós aqui, senhor Brunetto? - perguntei.

- Filho - respondeu ele -, se não te causar desgosto, deixa que Brunetto Latino se afaste de seu grupo e te faça companhia na breve caminhada.

- Se quiserdes, posso sentar aqui convosco - respondi -, se aquele que está comigo não se incomodar.

- Não posso parar. - respondeu - Fui condenado a vagar eternamente. Se um de nós se detiver, terá que permanecer por cem anos, sem poder afastar o fogo que o atormenta. Segue, portanto, e eu te acompanharei, e depois voltarei ao meu bando, que lamenta a sua dor eterna.

Andei ao seu lado, mas não desci do dique. Ele me perguntou o que eu fazia lá naquele vale infernal antes do tempo. Contei-lhe toda a história, desde a floresta escura até a jornada que eu empreendia com Virgílio. E então ele me fez várias previsões sobre o meu futuro e o de Florença. Disse:

- Por tuas boas ações, a raça maligna te será inimiga. E têm razão, pois entre as frutas podres não convém cultivar o figo. Pelas honras que teu destino te reserva, vão disputar-te ambas as facções, mas que do bode fique longe a erva.

- Minha mente não esquece - respondi - e meu coração se parte, ao lembrar de vossa figura, amável e paterna, que enquanto vivia no mundo, hora após hora, me ensináveis como um homem se faz eterno. - e disse-lhe ainda - Não é nova esta vossa profecia aos meus ouvidos. Eu anotarei e a levarei comigo, junto com outro texto, para que uma mulher (Beatriz) o interprete, se eu a encontrar.

Indaguei sobre o estado dos seus companheiros e se havia alguém conhecido entre eles. Ele me respondeu:

- Eu terei que ser breve, pois meu tempo é curto. Em suma, cada um deles foi prelado, letrado ou de grande fama e por um só pecado teve o desprezo do mundo. Se o meu grupo aqui estivesse, poderia te mostrar, por exemplo, Prisciano e Francesco d'Accorso. Eu conversaria mais, porém, já vejo uma poeira no Areal. Outro grupo se aproxima e com eles eu não posso me misturar. Lembre-se do meu Tesouro, no qual eu ainda vivo. É a única coisa que te peço.

Falou, e saiu correndo pelo deserto como atleta que disputa uma corrida.

No Canto XVI veremos os Espíritos de políticos florentinos
09/07/2011

4 comentários:

  1. É...

    Sobre esta postagem temos apenas uma curiosidade que vamos expressar:

    Brunetto Latini era filósofo e meste de retórica, foi muito querido e amigo íntimo de Dante.

    Em nossa pesquisa ao histórico virtual deste personagem, não descobrimos por que Dante o colocou neste círculo com a condenação de vagar eternamente sob a chuva de brasas.

    Contudo, segundo o comentador Villani, Brunetto era um homem dado a gozos e prazeres materiais.

    Mesmo assim não entendo como isto poderia levá-lo a uma pernalidade tão cruciante.

    Parece até que Dante PRETENDIA homenagear o amigo Brunetto Latini em seu poema, dedicando-lhe o Canto inteiro e o situando neste círculo, tendo em vista que a sua obra "A Divina Comédia" foi influenciada pelo trabalho dele.

    Em canto anterior, a Artemísia já havia mencionado que Dante situava as almas no lugar onde ele entendia que deviam estar, isto em virtude do seu conhecimento sobre os personagens em vida.

    Já os personagens mitológicos, ele extraia das lendas e da literatura de outros autores.

    Vicente Almeida

    ResponderExcluir
  2. Com certeza, Vicente, quem escreve sempre extrai muito da sua vivência, filtra e acrescenta ao nosso conhecimento.
    A releitura desta obra está maravilhosa. Quando li, tive o meu filho que já havia lido, para interpretar comigo. Espero que você já esteja procurando novos Clássicos para depois da Divina Comédia. Ler é Preciso!

    ResponderExcluir
  3. É...

    Artemísia:

    Você sabia que vários escritores da antiguidade descreveram o inferno.

    O Inferno dos pagãos foi sobejamente descrito por Homero e Virgílio, entretanto a necessidade poética imposta a forma muito embaraçava a compreensão.

    Já Fénelon, século XVII, descreveu com mais precisão e em prosa, o aspecto lúgubre dos lugares realçando o gênero de sofrimento dos culpados.

    Quanto a Dante, este descreveu o inferno segundo a cultura religiosa dos cristãos no seu tempo.

    Há muitos clássicos que conheço.

    Selecionei este, "A Divina Comédia" por ser portador de muitas lições morais, mas, a percepção humana ainda está longe de compreender o significado de certos tratados cuja leitura, só iria lhe proporcionar benefícios.

    Ainda não descobriram que um Blog, além de divertido, é um excelente meio para aprimorar conhecimentos.

    Vicente Almeida

    ResponderExcluir
  4. Vicente e esse Blog do Sanharol não é brinquedo, não. Ele tem de tudo!
    Um grande abraço.

    ResponderExcluir