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"Ultrapassa-te a ti mesmo a cada dia, a cada instante. Não por vaidade, mas para corresponderes à obrigação sagrada de contribuir sempre mais e sempre melhor, para a construção do Mundo. Mais importante que escutar as palavras é adivinhar as angústias, sondar o mistério, escutar o silêncio. Feliz de quem entende que é preciso mudar muito para ser sempre o mesmo".

Dom Helder Câmara


terça-feira, 12 de julho de 2011

A república que não foi – por Roberto Pompeu de Toledo (*)



Fará 100 anos, em agosto, que começou a ser publicado em capítulos no Jornal do Comércio do Rio de Janeiro o romance Triste Fim de Policarpo Quaresma, de Lima Barreto. O livro é hoje um clássico da literatura brasileira e o Policarpo do título um de seus personagens mais marcantes. Mesmo quem não leu o livro tem uma ideia de quem se trata – o patriota tão patriota, tão enamorado e orgulhoso das coisas do Brasil, e tão avesso à influência estrangeira, que um dia enviou uma representação à Câmara dos Deputados propondo a adoção do tupi como língua oficial, em lugar do importado português. Tão patriota que proibiu em sua casa o jantar de frango com o estrangeiro petit-pois. Tinha ele ser com guando.

Até lá pela metade do livro Policarpo Quaresma é personagem de comédia. Encanta-se com a magnitude dos rios brasileiros e tem tanta fé na dadivosidade do solo pátrio que, quando vira agricultor, se recusa a usar adubo nas plantações. Depois toma corpo um outro Quaresma, agora personagem de tragédia. O livro deve sua grandeza a essa transição. Como um herói do teatro grego, ele vai consumir-se numa luta perdida. Mas, à diferença dos heróis gregos, não é a manipulação dos deuses que o enreda na malha da danação. São as pragas bem terrenas do Brasil que tanto amou. A saúva que corrói suas plantações. O torniquete dos constrangimentos e das multas que, ao recusar-se a participar de uma fraude eleitoral, se fecha contra sua atividade de produtor rural.

Lima Barreto (1881-1922) é um ficcionista com pés muito firmes na realidade do seu tempo. Alvo preferencial de sua crítica – e de sua ira – é a política dos primeiros anos da República. Triste Fim de Policarpo Quaresma passa-se no tempo do marechal Floriano Peixoto (1891-1894) e da Revolta da Armada, o movimento que precipitou uma guerra de seis meses na Baía de Guanabara entre os rebeldes da Marinha e as forças do governo. Quaresma, que ainda acreditava em Floriano, decide alistar-se nas forças governistas. Vai fazê-lo apresentando-se pessoalmente ao presidente, a quem conhecera no tempo em que trabalhou no Ministério da Guerra. Tem a intenção de aproveitar a oportunidade para apresentar-lhe um memorial em que compendiara os problemas da agricultura.

O Itamaraty, então palácio presidencial, tem uma atmosfera de bulício e bajulação. Floriano, que como sinal do almoço recém-terminado ainda tinha um palito na boca, atende um e outro, recebe elogios, ouve apelos de "Energia, marechal". Quando chega sua vez, depois de apresentar-se como voluntário, Quaresma começa a falar da agricultura. Floriano ouve-o com enfado. "Trouxe até este memorial", diz Quaresma. "Deixa aí", responde o presidente. Chama o próximo. É um oficial a quem precisa anotar uma ordem. Pega então do lápis e, na falta de outro papel, rasga um pedaço das primeiras páginas do manuscrito de Quaresma.

O retrato que o livro apresenta de Floriano é arrasador. O olhar era "mortiço, redondo, pobre de expressões", próprio de uma "ausência total de qualidades intelectuais". Aquele que outros viam como o "Marechal de Ferro" possuía, segundo Lima Barreto, a "tibieza de ânimo" como traço predominante e um temperamento marcado por "muita preguiça". Ao longo da Revolta da Armada, Quaresma experimentará da rotina sem sentido dos tiros perdidos dos navios para os fortes, e vice-versa, transformados a certa altura em diversão para a população até a matança cruel que se seguirá, como vingança à derrota dos insurretos. Agora perfeito e consumado personagem de tragédia, morrerá por força da injustiça e da ferocidade dos detentores do poder, mas também dos efeitos da desilusão e da solidão de suas causas.

O livro investe contra Floriano, os militares e o "Santo Ofício Republicano". Lima Barreto, que tinha o vezo de atalhar o relato ficcional com diatribes de editorialista, acusava o "nefasto e hipócrita positivismo", a ideologia dos militares que proclamaram a República, de um "pedantismo tirânico, limitado e estreito, que justificava todas as violências". Ele era mais um dos desencantados com a "república que não foi", como se dizia na época – a dissipação da ideia de república num mar de intolerância, de desonestidade e de mistificação.
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Releve o leitor voltar à nossa rasa vidinha de cada dia, mas é irresistível. Se ressuscitassem hoje Policarpo Quaresma e Lima Barreto, veriam que continuam os embustes com a palavra "república". Hoje temos um Partido da República. Aquele do Ministério dos Transportes.
(*) Roberto Pompeu de Toledo, é jornalista. Escreve quinzenalmente para a “Veja”.

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