Páginas


"Ultrapassa-te a ti mesmo a cada dia, a cada instante. Não por vaidade, mas para corresponderes à obrigação sagrada de contribuir sempre mais e sempre melhor, para a construção do Mundo. Mais importante que escutar as palavras é adivinhar as angústias, sondar o mistério, escutar o silêncio. Feliz de quem entende que é preciso mudar muito para ser sempre o mesmo".

Dom Helder Câmara


terça-feira, 12 de julho de 2011

A DIVINA COMÉDIA - Canto XVI - Por Vicente Ameida

Canto XVI

Espíritos de políticos florentinos

Chegávamos onde já se ouvia o ruído da água que caía no outro círculo, com um som semelhante ao zumbido que se ouve ao aproximar-se de uma colmeia, quando chegaram até nós três sombras, correndo, se separando de seu grupo que nos passava.

- Pára,
tu, de vestes conhecidas! - gritavam - Pára pois pareces ser de nossa terra perversa (Florença).

Ó tristes almas sofredoras! Quantas vi com seus membros repletos de feridas novas e antigas, queimaduras que ainda me doem só de pensar. Os seus gritos chamaram a atenção do mestre, que voltou-se para mim e disse:

- Espera! Com estas três almas te rogo cortesia.


Guido Guerra - Tegghiaio Aldobrandi e Jacopo Rusticucci
Pintura de Giovanni Stradano - Século XVI

Paramos. Os três espíritos, que não podiam parar, logo formaram uma roda e começaram a andar em um círculo. Enquanto circulavam, cada um mantinha o rosto virado na minha direção, de forma que enquanto o pescoço virava para um lado, os pés seguiam para o outro.

- Se a miséria deste solo estéril - falou um deles - e nossas queimaduras, bolhas e peles descascadas te causam repugnância, deixa que a nossa fama te anime a dizer quem és tu, que vivo caminhas por este inferno. Este na minha frente, embora corra nu com o corpo esfolado, foi figura de alto grau no mundo. Seu nome era Guido Guerra e muito ele cumpriu com seus conselhos e com a espada. Este outro, que está atrás de mim, é Tegghiaio Aldobrandi, cuja voz o mundo faria bem em ouvir. E eu, sou Jacopo Rusticucci.

Eu fiquei tão comovido com o sofrimento daqueles espíritos que, se não fosse a chuva de brasas e o fogo, eu teria ido ao encontro deles, com a aprovação do mestre. Tive vontade de descer do dique e abraçá-los mas não o fiz por receio de me queimar. Depois falei:

- Não repugnância, mas tristeza sinto por vossa condição. É verdade que eu sou da vossa terra. Lá, eu sempre ouvi falar muito bem de vossas obras e de vosso caráter.

- Que longamente possa tua alma continuar a guiar teus membros - disse o mesmo que antes havia falado - e ainda depois, possa tua fama continuar a brilhar, mas dize, cortesia e valor ainda vigoram em nossa terra? Pois Guglielmo Borsiere, que recentemente juntou-se a nós, trouxe notícias que nos causaram imensa tristeza.

- Os novos povos e seu rápido enriquecimento têm estimulado o orgulho e descontrole em ti, Ó Florença! - gritei, e eles se olharam, tomando isso como resposta.

- Se sempre respondes de forma tão clara - falaram todos - feliz de ti quando precisares discursar. Logo, se conseguires sair destas trevas e um dia voltar a rever as estrelas, não deixes de falar de nós aos que ainda vivem!

Depois desfez-se a roda e sumiram os três. Virgílio, então, decidiu que já era hora de partirmos também. Caminhamos e eu o segui até que chegamos a um ponto onde o ruído das águas tornou-se tão intenso que mal podíamos ouvir nossas próprias vozes.

Eu mantinha uma corda enrolada na cintura, que, em uma outra ocasião, pensei em usar para vencer o leopardo na floresta. O mestre a pediu, e eu a desenrolei entregando-a nas suas mãos. Ele a pegou e caminhou até a borda do precipício, de onde a jogou no abismo profundo.

Diante de tal cena eu pensei: "Algo deverá acontecer, pois algum evento o mestre busca com o olhar". Lendo os meus pensamentos, Virgílio me respondeu:

- O que tua mente espera logo surgirá à tua visão.

Mal ele havia terminado de falar, eu vi surgir da escuridão, nadando naquele ar denso e escuro, uma grande e estupenda figura que assombraria até os corações mais seguros. Ela já reduzia a sua velocidade e preparava-se para pousar na beira do precipício, estirando suas garras e recolhendo seus pés.

No Canto XVII, veremos Gerión - Espíritos de famílias da alta nobreza

12/07/2011

4 comentários:

  1. É...

    Viaje comigo pela história. Vale a pena saber um pouco sobre FLORENÇA:

    berço do renascimento italiano, é uma das cidades mais belas do mundo. Data do século I a. C. e foi edificada junto às ruínas de uma cidade etrusca.

    Muitos gênios, como Leonardo da Vinci, Michelangelo, Dante Alighieri, Filippo Brunelleschi e Nicolau Maquiavel, contribuíram para sua grandeza.

    Foi em Florença que no século XIII, Dante Alighieri alicerçou seu poema "A Divina Comédia" e de onde extraiu a maioria dos seus personagens.

    Durante os séculos XIII e XIV, a cidade foi agitada por lutas contínuas entre os guelfos, partidários do poder papal, e os gibelinos, vinculados ao império alemão.

    Mesmo assim, essa foi uma época de esplendor econômico e cultural, com escritores que se tornaram imortais, como Dante, Petrarca e Boccaccio, e pintores como Giotto.

    Guido Guerra foi um líder guelfo que participou de diversas batalhas. Como Tegghiaio, aconselhou os guelfos florentinos a não engajarem na guerra contra Siena em 1260.

    Tegghiaio Aldobrandi foi um distinto cidadão de Florença que assumiu posição contrária ao conselho da cidade que havia decidido declarar guerra contra Siena. A guerra resultou na sangrenta batalha de Montaperti na qual os florentinos foram derrotados.

    Jacopo Rusticucci: foi um nobre florentino muito rico cuja maior desgraça foi ter se casado com uma mulher de caráter insuportável, que teria sido a causa do seu desvio.

    Vicente Almeida

    ResponderExcluir
  2. Prezado Vicente.

    Venho acompanhando as suas postagens. Leio-as com bastante atenção. Não tenho manifestado opinião ou depoimento, mas acho-as muito interessantes.

    parabens.

    ResponderExcluir
  3. Vicente, eu estou amando estas postagens. Os seus comentarios são muito esclarecedores e deixam a gente na espera do próximo Canto.
    Um abraço.

    ResponderExcluir
  4. É...

    Blog do Sanharol -MORAIS:

    Caro amigo, obrigado por dar atenção a estas postagens.

    Acredite, elas são o resultado de muita maturação para que sejam postadas aqui no Blog do Sanharol.

    É como se estivesse fazendo uma tornêe pela história antiga e conhecendo lugares, povos e personagens da literatura clássica, do renascimento e muito, muito mais.

    Você não se preocupe em comentar o texto em si, ele é realmente complexo, mas, a gente sempre colhe subsídios para outras ocasiões.

    Você fez o seu comentário, marcou sua presença na postagem e isto é o que interessa.

    ARTEMÍSIA:

    é um prazer estar com você nesta jornada. Tento fazer o melhor que posso para tornar a postagem compreensiva.

    Um abraço do

    Vicente Almeida

    ResponderExcluir