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"Ultrapassa-te a ti mesmo a cada dia, a cada instante. Não por vaidade, mas para corresponderes à obrigação sagrada de contribuir sempre mais e sempre melhor, para a construção do Mundo. Mais importante que escutar as palavras é adivinhar as angústias, sondar o mistério, escutar o silêncio. Feliz de quem entende que é preciso mudar muito para ser sempre o mesmo".

Dom Helder Câmara


quarta-feira, 20 de março de 2024

O protesto do mel de cana-de-açúcar - Por Norma Novais Miranda.

Os nossos patrões não aguentaram a cobrança de tantos impostos para um produto tão barato. A nobreza dos engenhos "só nós sentia".

para me deixar assim num ponto cheiroso e efervescente, muita coisa se mexia : o corte da cana, os "cambiteiros", o transitar de burros, o espalhar do bagaço, os tanques de garapa, o curral com os chocalhos tinindo vida rural...Tudo era movimento.

Ninguém pôde fazer nada para que eu seguisse fervendo, tornando-me rapadura.

Na certa, os homens de Brasília e de outras terras não gostam de comer rapadura quente na casca do pau da lenha.

Eu, enquanto mel, achava bonito me derramarem na gamela para fazer mexido. Também, achava uma beleza as rapaduras se desprendendo das caixas em cima do bagaço.

Já não caia na gamela efervescendo-me. Evaporou-se o meu cheiro inebriante exalado do fundo do tacho. O mestre já não precisa dar o ponto para se obter a melhor rapadura, e, nem o tocador de fogo se esforçará para colocar o bagaço seco na boca da fornalha.

Patativa já dizia que os "ingem de pau" iriam se acabar. O engenho de ferro também, sábio poeta nosso.Aquela beleza da cana "pendurada". E eu choro um choro amargo de não puder fabricar a doce rapadura.

Os engenhos de pé de serra de Porteiras e muitos de Barbalha foram para a sepultura. Para o investidor sabido vale mais a cana, o açúcar, o álcool e outros negócios mais sofisticados e não artesanais.

Mas, achei mais que luto rural os trabalhadores e os patrões chorarem porque não teriam mais moagem. E a vida desses homens que aprendenram a acordar cedo e só sabiam o manejo do engenho ou de alguma rocinha feita com enxada? E as famílias deste povo de engenho?

Eu, como mel, esfriei no fundo do meu tacho e neste achado de falar, quero esquentar ferver as consciências dos que fizeram a destruição dos engenhos em nome do que se chama progresso ou coisa parecida.

A saudade, a memória, o aperreio de vida, a aventura desastrosa de ir para São Paulo... tudo torna-se uma loucura só nossa, amamos os engenhos.

Na verdade, no meu protesto como mel, que agora se deixa queimar de indignação, os engenhos tornaram-se uma bagaceira por parte dos poderes públicos e de tudo e todos que contribuíram para nossa sucumbência.

O verde vale continua fértil e majestoso. Talvês desgostoso de não escutar mais os apitos dos engenhos, o meu cheiro e o do bagaço fresco. 

O verde vale já não vale tanto. Deixou que o seu doce amor, a rapadura se acabasse. 

E eu, mel, como não fervo mais, sou uma frieza sócio-econômica e histórica que se cala nos engenhos abandonados.

Um comentário:

  1. Um texto de bela feitura. Escrito com razoabilidade admirável. Não temos a que acrescentar ou subtrair, simplesmente perfeito.

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