I N F E R N O
Espírito do Frade Guido de Montefeltro
A chama agora estava imóvel e quieta. Nada mais falou e já se afastava com a licença do poeta quando uma outra, que vinha logo atrás, chamou nossa atenção à sua ponta que liberava ruídos estranhos. A ponta começou a mover-se, como se fosse uma língua, até que ouvimos:
Eu ainda escutava a chama falar quando o mestre me cutucou e disse:
- Fala tu, pois este é latino! é o frade Guido de Montefeltro
E eu, que já estava preparado para lhe responder, comecei:
- Ó tu que te escondes nessa chama, no coração dos seus tiranos tua Romanha sempre esteve em guerra, mas quando eu a deixei, ela não estava envolvida em conflitos. Ravena está como há muitos anos e a águia de Polenta já estica suas asas sobre a Cérvia. O mastim novo de Verrucchio, assim como o velho, continuam a sugar o sangue de seu povo.
Falei-lhe ainda de Forli, Lamone, Santerno e outras cidades da Romanha. No final, lhe pedi:
- Agora peço que me conte quem és, para que eu possa estender, no mundo, a tua fama.
- Se eu acreditasse que eu estava falando com uma alma que iria voltar ao mundo, esta chama não mais se moveria, mas como nunca, deste abismo, alma alguma jamais escapou, sem medo de infâmia eu te respondo. Fui guerreiro e depois frade franciscano, acreditando que assim poderia corrigir os meus erros do passado.
Arrependi-me dos meus pecados e confessei meus erros. Ai miserável! E bem teria valido se não fosse aquele príncipe dos novos fariseus (papa Bonifácio VIII), que me pediu para ajudá-lo a destruir a fortaleza Perestrina. Para ele, não importava o cargo supremo que ocupava, nem os votos sagrados e nem o cordão que eu usava.
Ele me pediu conselho, e eu calei. Mas depois falou de novo: "Não sejas desconfiado! Eu já te absolvo dos pecados que vieres a cometer. O céu eu posso fechar ou abrir, como tu sabes, pois são duas as chaves que meu antecessor não soube guardar."
Eu, convencido pelos seus argumentos, aceitei, e disse: "Padre, desde que me absolvas do pecado que estou prestes a cometer, te aconselharei: Prometa a eles, anistia. Depois, quando obedecerem, volte atrás e não cumpra a promessa! Se assim fizeres, triunfarás!"
No momento da minha morte, São Francisco veio buscar minha alma, mas antes que ele pudesse me levar um querubim negro se antecipou e, utilizando argumentos lógicos, demonstrou que eu deveria ir para o inferno: "Para baixo ele virá comigo, pois deu conselho fraudulento. Não se pode absolver o impenitente, nem pode o arrependido ainda querer pecar, pois assim nada vale seu arrependimento."
Coitado de mim. Quando ele me tomou ainda falou: "Nem imaginavas que eu pudesse argumentar tão bem, não foi?" O demônio me levou até Minós, que se enrolou no rabo oito vezes e, de tanta raiva ainda o mordeu, me enviando a esta oitava vala para ser prisioneiro do fogo eterno.
Depois que concluiu o seu relato, a chama calou-se e se afastou, torcendo e debatendo o corno agudo. Eu e o mestre dali partimos, subindo pela escarpada para o arco seguinte, que atravessa o fosso onde pagam suas penas aqueles que as ganharam desunindo.
O Frade Guido Montefeltro um mau conselheiro
Ilustração de Helder da Rocha
- Ó tu a quem dirijo a minha voz, que falavas há pouco em lombardo, dizendo: "Podes ir, não te peço mais nada", embora tenha eu demorado em chegar a ti, não te incomodes se eu falar contigo, pois vês que não incomoda a mim, que estou ardendo em chamas! Se tu acabas de cair do mundo, daquela doce terra latina, dize-me, está a Romanha em paz ou em guerra?
Ilustração de Helder da Rocha
- Ó tu a quem dirijo a minha voz, que falavas há pouco em lombardo, dizendo: "Podes ir, não te peço mais nada", embora tenha eu demorado em chegar a ti, não te incomodes se eu falar contigo, pois vês que não incomoda a mim, que estou ardendo em chamas! Se tu acabas de cair do mundo, daquela doce terra latina, dize-me, está a Romanha em paz ou em guerra?
Eu ainda escutava a chama falar quando o mestre me cutucou e disse:
- Fala tu, pois este é latino! é o frade Guido de Montefeltro
E eu, que já estava preparado para lhe responder, comecei:
- Ó tu que te escondes nessa chama, no coração dos seus tiranos tua Romanha sempre esteve em guerra, mas quando eu a deixei, ela não estava envolvida em conflitos. Ravena está como há muitos anos e a águia de Polenta já estica suas asas sobre a Cérvia. O mastim novo de Verrucchio, assim como o velho, continuam a sugar o sangue de seu povo.
Falei-lhe ainda de Forli, Lamone, Santerno e outras cidades da Romanha. No final, lhe pedi:
- Agora peço que me conte quem és, para que eu possa estender, no mundo, a tua fama.
- Se eu acreditasse que eu estava falando com uma alma que iria voltar ao mundo, esta chama não mais se moveria, mas como nunca, deste abismo, alma alguma jamais escapou, sem medo de infâmia eu te respondo. Fui guerreiro e depois frade franciscano, acreditando que assim poderia corrigir os meus erros do passado.
Arrependi-me dos meus pecados e confessei meus erros. Ai miserável! E bem teria valido se não fosse aquele príncipe dos novos fariseus (papa Bonifácio VIII), que me pediu para ajudá-lo a destruir a fortaleza Perestrina. Para ele, não importava o cargo supremo que ocupava, nem os votos sagrados e nem o cordão que eu usava.
Ele me pediu conselho, e eu calei. Mas depois falou de novo: "Não sejas desconfiado! Eu já te absolvo dos pecados que vieres a cometer. O céu eu posso fechar ou abrir, como tu sabes, pois são duas as chaves que meu antecessor não soube guardar."
Eu, convencido pelos seus argumentos, aceitei, e disse: "Padre, desde que me absolvas do pecado que estou prestes a cometer, te aconselharei: Prometa a eles, anistia. Depois, quando obedecerem, volte atrás e não cumpra a promessa! Se assim fizeres, triunfarás!"
No momento da minha morte, São Francisco veio buscar minha alma, mas antes que ele pudesse me levar um querubim negro se antecipou e, utilizando argumentos lógicos, demonstrou que eu deveria ir para o inferno: "Para baixo ele virá comigo, pois deu conselho fraudulento. Não se pode absolver o impenitente, nem pode o arrependido ainda querer pecar, pois assim nada vale seu arrependimento."
Coitado de mim. Quando ele me tomou ainda falou: "Nem imaginavas que eu pudesse argumentar tão bem, não foi?" O demônio me levou até Minós, que se enrolou no rabo oito vezes e, de tanta raiva ainda o mordeu, me enviando a esta oitava vala para ser prisioneiro do fogo eterno.
Depois que concluiu o seu relato, a chama calou-se e se afastou, torcendo e debatendo o corno agudo. Eu e o mestre dali partimos, subindo pela escarpada para o arco seguinte, que atravessa o fosso onde pagam suas penas aqueles que as ganharam desunindo.
No Canto XXVIII, chegaremos a vala dos separatistas
06/08/2011
É...
ResponderExcluirEste Canto não trás novidades, é apenas uma continuação do Canto XXVI, "A vala dos maus conselheiros".
O destaque fica por conta de Guido de Montefeltro (1223-1298) a chama falante. Ele era um capitão guibelino famoso por sua sabedoria e estratégias militares.
Obteve sucesso em várias batalhas contra os guelfos. Chegou a ser excomungado mas, alguns anos depois, se reconciliou com a igreja e entrou para a ordem dos franciscanos.
Tornou-se frade, mas deu um mau conselho ao papa Bonifácio VIII, resultando na traição contra a família colonna, a qual foi escomungada, tendo o seu palácio saqueado e destruído por ordem papal.
Aqui observamos que as intrigas entre os papas e os senhores feudais era por demais desiguais pois, os papas detinham um grande poder, e em nome de Deus, cometiam muitos desatinos e atrocidades contra seus desafetos, e nada sofriam.
Como Dante era conhecedor da vida papal e dos seus desmandos, e não comungasse das idéias deles, resolveu por bem, destinar-lhes algumas valas infernais, já citados em Cantos anteriores.
Vicente Almeida
Estou acompanhado. Abraço. Fatima.
ResponderExcluirDante e suas valas...
ResponderExcluirPois é, Vicente: Em nome de Deus!
Quanta atrocidade!
É...
ResponderExcluirArtemísia e Fátima:
Lembro que desde meus treze anos, comecei a questionar religião, não aceitando as informações da igreja da forma que chegava ao meu conhecimento. Era como uma imposição: O padre falou e tava falado, ninguem discutia mais.
E eu ficava a observar... Meus pais, seus amigos, toda a minha família resando pela mesma cartilha: O céu e o inferno.
Eles falavam da bondade infinita de Deus, e ao mesmo tempo falavam dos castigos eterno. Eu via nisto um contra-senso, e meditava: Se Deus como dizem os padres, é infinitamente justo, então o inferno não existe.
E eu me questionava sem coragem de argumentar. Até que aos dezesseis anos, adquiri o domínio de mim mesmo e dei um basta.
Comecei a trabalhar na busca de Deus, mas, um Deus espiritual, fora da concepção humana e dogmática. Um Deus que não toma partido, não castiga nem premia ninguém, mas, na forma de suas leis imutáveis, estabeleceu regras que se seguidas, seremos felizes para sempre.
Aprendi com o tempo, que o inferno é um estado da alma, de acordo com a sua conduta, e não um lugar definido onde o pecador sofrerá eternamente.
Sei que muita gente não vai me entender nem aceitar meus argumentos, mas isto não me preocupa. Continuarei estudando e buscando sempre a verdade.
Muitos, não querem ter o trabalho da busca e aceitam qualquer informação como verdade. Não consigo ser assim.
Ah sim! Aonde quero chegar com isto?
Bem, só quero dizer que Dante em "A Divina Comédia" tenta nos mostrar que para cada tipo de falta nossa, há o correspondente reflexo pós morte, que aqui chamo de contrapasso.
Claaro que o sofrimento não será eterno como ele afirma, mas durará tanto quanto for necessário para que o pecador seja redimido e perdoado por aqueles a quem prejudicou, secundo as leis divinas.
Muitos erros foram cometidos pelos ministros eclesiásticos. Chegaram ao cúmulo de vender salvação, e com isto tomaram muitos bens dos incautos. Cometeram muitos e horrendos crimes no período inquisitorial. Venderam indulgencias: Quem fizesse uma doação a igreja e viesse a morrer, digamos, dentro de trezentos dias, teria garantida a salvação.
Nunca, em livro algum encontrei algo afirmando que Deus havia autorizado essas negociações celestes.
E por todos esses desmandos culpam a Igreja!
Mas a igreja não é responsável pelos erros dos seus ministros. Cada um é o único responsável pelos seus próprios erros, devendo responder por eles a qualquer momento.
Vicente Almeida
Vicente, muito boa a sua explicação. Acredito e creio num Deus que é Amor. Não tem cor, forma, idade, identidade nenhuma.
ResponderExcluirAcredito na filosofia do bem que se contrapõe ao mal. Isso é real.
Acredito nas pessoas de Boa Vontade. Acredito num caminhar com alegria, servindo ao próximo. Acredito no segredo da abundância que está na Doação. Bom, como você viu, acredito numa porção de coisas Boas, é claro! Assim como o inferno é um estado de espírito, o Céu também o é! E o Reino de Deus começa aqui na Terra, conforme se vive, nossa vida é um ou outro.
Um grande abraço, amigo!