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"Ultrapassa-te a ti mesmo a cada dia, a cada instante. Não por vaidade, mas para corresponderes à obrigação sagrada de contribuir sempre mais e sempre melhor, para a construção do Mundo. Mais importante que escutar as palavras é adivinhar as angústias, sondar o mistério, escutar o silêncio. Feliz de quem entende que é preciso mudar muito para ser sempre o mesmo".

Dom Helder Câmara


terça-feira, 9 de agosto de 2011

HISTÓRIAS DE JOÃO DINO – A VINGANÇA DA DOIDA

Diazepam, Valium, Luminal, Gardenal, Benzodiazepina, Metildiazepinona, Deacepin, Barbitúrico... Que os cientistas descobridores desses medicamentos prestaram relevantes serviços à humanidade, ninguém tem dúvidas disso... Que os avanços da medicina erradicaram os doidos que faziam presepadas nas ruas, também é uma realidade.

Mas para o folclore Nordestino o desaparecimento dos doidos das cidades causou prejuízos... Pelo menos eu, não vejo graça numa cidade sem doidos.

Não estou me referindo a esses malucos modernos que fazem de seus veículos armas perigosas e que matam e morrem no trânsito; Também aos malucos que usam drogas alucinógenas adquiridas de traficantes marginais, e que chegam a destruírem famílias inteiras...

Refiro-me aos doidos que interagiam com os meninos de rua que não conheciam outros meios de entretenimento, e que inocentemente se divertiam aperreando doidos.

Até meados dos anos 60, todas as cidades tinham muitos doidos. Alguns sobreviventes viraram celebridades, e hoje são entrevistados por apresentadores de rádios e TV's.

Você que tem a minha idade (5.5) deve estar lendo este texto morrendo de saudade dos doidos.

Em um minuto eu me lembrei de 12 doidos, contemporâneos da minha infância e adolescência, que conheci entre as cidades de Icó e Orós.

Mas que isso: Recordei o nome de cada um, os apelidos e os gestos que a gente fazia para irritá-los.

Os doidos de ruas (Vou excluir os de famílias ricas que eram mantidos acorrentados ou enjaulados): Maria Vaca-Preta, Romana Caboré, A Doida do Jornal, Peteca do Rádio, Chica Gaitada, Frutuoso Fedorento, Carlito Doido, Uba-Uba, Deó, Hélio Doido, João Brandão e Ronaldo Zagueiro (Esse ainda é vivo... Há quem acredite que ele está sarado... Mas eu, particularmente, acho que ele não se curou... E vou provar... Quando ele souber que eu o coloquei nesse rol, vai dar uma grande gargalhada... E isso, prá mim, é coisa de doido).

Pois bem meus amigos... Tem o dia da caça e o dia do caçador... Eu e meu amigo Luiz de Maroca passamos por um pedacinho que nós não desejamos a ninguém... Vou contar porque sei que os seres humanos adoram fazer graça com a desgraça alheia...

As máquinas da usina de Eliseu Batista, de Orós-CE, após beneficiarem o algodão, separavam os caroços para fabricação de óleo comestível. Esse processo produzia uma borra, um resíduo. Essa borra de óleo era expelida por uma tubulação, numa quantidade que chegava a poluir o riacho, antes do destino final que era o Rio Jaguaribe.

Alguém descobriu que aquela borra de óleo servia para fabricar sabão. Dezenas de pessoas se aglomeravam nesse riacho coletando esse resíduo.

Eu arrumei um sócio para essa empreitada: Meu amigo Luiz de Maroca. E numa segunda-feira das férias do mês de julho de 1966, nós saímos de casa 5 horas da manhã, conseguimos uma área privilegiada para coletar esse material, e trabalhamos até o meio dia (Quem diz que trabalho prejudica menino não sabe o que está dizendo. Menino que trabalha e ganha o seu próprio dinheiro, já cresce cidadão, jamais vai dar trabalho aos pais e as polícias).

Uma lata de flandres de 20 litros dava para fazer 10 barras de sabão.

Empreendedor como eu sempre fui, nossas barras de sabão eram carimbadas com as letras JD & LM. Abreviaturas dos nomes João Dino e Luiz de Maroca.

Coletar a borra da usina com uma colher de pau, separando o óleo do caroço de algodão da água do riacho, artesanalmente, transportar até o Alto dos Custódios subindo um km, cortar lenha para queimar e ferver essa matéria prima, confeccionar as barrinhas de sabão etc., tudo isso era moleza; Difícil mesmo era vender, porque a concorrência era grande.

Nossa produção de 40 barras de sabão por semana eu comercializava em Icó.

Meio dia, nós concluímos a coleta da 2ª lata de borra. Amarramos os paus das latas com cordas. Um caibro de 3 metros servia como gangorra para aliviar o peso e conduzir as duas latas para o quintal da casa do meu sócio, onde funcionava a fábrica.

Anda, descansa, troca a posição de um ombro para o outro, ajeita a rodilha de pano que servia de forro etc., uma hora da tarde estávamos nós a 10 metros de casa, na parte de maior aclive da ladeira (Orós foi construída entre duas grandes serras. Não existem ruas planas). Nesse trecho do caminho não tinha como colocar as latas de borra no chão. A gente era obrigado a subir num fôlego só.

Pois foi justamente nesse ponto crítico que Chico de Zé Sabugo, o menino mais ruim que o Criador despejou na face da terra, apareceu balançando um chocalho na mão, aboiando e aperreando a doida Maria Vaca Preta.

Maria era uma doida valente. Pesava uns 100 kg. Tinha mais força que uma jumenta embuchada. Usava um vestido preto cobrindo o mocotó. Quando ingeria um oito de cachaça na bodega de Dedé de Bia Laurentino, ela saia mordendo os beiços, espumando pelos cantos da boca, cabelo arrepiado, pés descalços... Pense numa marmota que aterrorizava a cidade.

Essa doida enfurecida foi até a cerca da casa de Vó, retirou uma vara de 2 metros e fez carreira prá bater em Chico.

O infame, propositadamente, veio para o nosso lado e ficou se protegendo por trás das latas cheias de borra de óleo.

A doida levantava a vara com as duas mãos e baixava para acertar na cabeça dele. O desgraçado se abaixava e a vara batia nas latas com tanta força que doía nos ombros da gente.

Enquanto isso eu e meu sócio permanecemos parados. Tremendo de medo mas sem poder fazer nada.

De repente ela mudou de idéia... Doido é doido... Desistiu de acertar o peste do Chico de Zé Sabugo, arregalou os olhos, me encarou a curta distância, levantou a vara, mirou bem no meio da minha cabeça, e golpeou imitando os campeões de lutas marciais.

Eu não pensei duas vezes; soltei no chão o caibro que estava no meu ombro segurando as latas de borra de óleo, e saí correndo.

Ainda hoje eu me lembro da cara do meu sócio Luiz de Maroca, com os olhos cheios d’água, olhando os 40 litros de matéria prima, coletados com tanto sacrifício, escorrendo ladeira abaixo. Perdemos todo o nosso trabalho.

E a doida ainda achou pouco o que fez... Ficou pisoteando as latas de flandres e se lambuzando com a borra de óleo.

Para completar, tivemos ainda que suportar os insultos dos nossos vizinhos: Estão vendo aí... Isso é castigo para vocês deixarem de aperrear os doidos.

Intenção de sangrar o causador desse prejuízo, Chico de Zé Sabugo, no estilo do saudoso Capitão Virgulino Lampião, a gente teve. Mas além de ser bem mais forte do que nós, ele tinha fama de arrochado, e andava armado com uma peixeira. Conclusão: Optamos por deixar prá lá... Quando chegar lá nas profundas ele pagará o que nos fez (Os “cabras” frouxos pensam assim. Já dizia meu pai...)


3 comentários:

  1. Prezado João Dino.

    Então voce foi concorrente de Eliseu Batista na fabricação de sabão? A Empresa ELIBA fabricava o sabão Caboclo muito conhecido e de grande preferencia pelos consumidores do nordeste.

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  2. Grande João Dino.
    Conheci o personagem principal dessa historia, a "vaca Brava" ela era desse jeito que você relatou. Causava medo em todos os meninos de Orós, mais nós sempre arranjamos um jeito de aprontar alguma danação com ela.
    Abraço.

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  3. CARO VALDIMIRO, O QUE EU ACHAVA IMPRESSIONANTE ERA O FATO DE VACA PRETA GOSTAR DE CORRER ATRÁS DOS MENINOS.
    QUANDO A GENTE ESTAVA CONCENTRADO JOGANDO 7 BURACOS, OU BATENDO BOLA, ELA PASSAVA PELO MEIO, ASSIM COMO QUEM PEDIA PARA SER APERRIADA.

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