I N F E R N O - F I N A L
- Estamos diante das bandeiras do rei do Inferno - disse-me Virgílio, - Olha pra frente e vê se consegues discerni-lo.
Comecei a ver, na distância, o que parecia ser um grande moinho, que provocava aquelas rajadas de vento gelado. Estávamos chegando ao lugar onde eram punidos aqueles que traíram os seus benfeitores.
Neste lugar sombrio e gelado, as almas estavam completamente submersas no gelo, transparecendo como palha em cristal. Algumas estavam de pé, outras de ponta-cabeça, outras atravessadas, outras em arco, outras curvadas e outras invertidas.
Quando já tínhamos caminhado o suficiente, o mestre decidiu me mostrar aquele que um dia teve tão belo semblante:
- Esse é Dite - disse ele - e este é o lugar que exige toda a coragem que tens em ti.
Não me perguntes, leitor, como eu fiquei fraco e gelado, pois não há palavras que possam descrever aquela sensação. Eu não morri, nem estava vivo. Tente imaginar, se puderes, como sem uma coisa nem outra eu fiquei. Vi aquele gigante submerso no gelo, despontando seu corpo do peito para cima. Só o seu braço tinha o tamanho de um daqueles gigantes que encontramos na entrada do lago.
Fiquei mais assombrado ainda quando vi que três caras ele tinha na sua cabeça. Toda vermelha era a da frente. A da direita era amarela e a da esquerda negra. Acompanhava cada uma, um par de asas como as de morcego (eu nunca vi um navio com velas tão grandes). E ele as abanava, produzindo três ventos delas resultantes. Era esse vento que congelava as águas do Cócito. Ele chorava por seis olhos e dos três queixos caía uma sangrenta baba que pingava junto com as lágrimas. Em cada boca ele moía um pecador. O da frente ele mordia mais rapidamente que os outros. Cada ceifada lhe arrancava a pele inteira.
- Esse da frente é Judas Iscariote - disse-me o mestre - que sofre pena dobrada, com a cabeça para dentro e as pernas para fora. O que é mordido pela boca preta é Bruto e o outro é Cássio. Mas em breve será noite. Está na hora de partirmos, pois já vimos tudo o que há para se ver. Agora, agarre-se em mim firmemente.
Obedeci-o e ele me carregou, se dirigindo para as costas de Lúcifer. Aguardou um pouco e quando as asas estavam altas, saltou da beira de um fosso para a escuridão, mas logo agarrou-se às costas peludas do Demônio. Descemos mais ainda. Estávamos entre as costas de Lúcifer e às crostas congeladas do Cócito. Quando chegamos à altura da junção da coxa ao tronco do gigante infernal, meu guia, já mostrando sinais de fadiga, inverteu o corpo e, sem soltar os pelos do monstro, seguiu, como se subisse, me fazendo pensar que voltávamos para o inferno.
- Segura firme - disse ele - pois não há outro caminho. Só por estas escadas poderemos escapar de tanto mal.
Abertura para o Purgatório
Ilustração de Paul Gustave Doré
E saímos por uma brecha na rocha. Virgílio, visivelmente exausto por ter me carregado, me colocou numa beira para que eu me sentasse. Olhei para cima procurando por Lúcifer mas não o achei. Encontrei-o lá embaixo de pernas para o ar. Virgílio me confundiu ainda mais, falando:
- Levanta-te pois o caminho é longo. O dia já amanhece!
- Como amanhece? - perguntei-lhe - O tempo passou tão depressa assim? Como já pode ser dia se agora há pouco começava a noite? E me esclareças mais: onde está a geleira? E por que Lúcifer está de cabeça para baixo?
- Tu pensas que ainda estamos do outro lado. - disse-me o guia - Nós passamos pelo centro da terra, que puxa todo peso. Estamos agora embaixo do céu oposto, no hemisfério de água. Sob teus pés está uma pequena esfera, cujo lado oposto é ocupada pela Judeca. Se do outro lado anoitece, aqui o dia nasce.
Este buraco por onde passamos foi formado quando Dite caiu do céu, e ele até hoje aí permanece. Depois da queda, por medo dele, a terra que formava os continentes deste lado fugiu para o nosso céu deixando encoberto pelo mar todo este hemisfério. A terra que estava aqui amontoou-se na superfície onde formou uma montanha, deixando este caminho vazio. Aí embaixo há um lugar, tão distante de Belzebú quanto o limite de sua tumba, conhecido pelo som (e não pela vista) de um pequeno riacho que para cá descende, pelo sulco que por ele foi aberto.
Passamos então o resto do dia seguindo por aquele caminho escondido debaixo do chão, sem descanso algum. Depois da longa caminhada subimos, ele primeiro e eu atrás, passando por uma pequena abertura na pedra, para enfim, rever as estrelas. O ceu resplandecia em beleza.
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PRONTO:
Chegamos ao final da grande jornada pelo Inferno, através do poema "A Divina Comédia", do florentino Dante Alighieri.
O horror e o sofrimento, são realidades não descartáveis, às vezes bem pior do que aqui descrito, mas, nunca eternos. Na verdade, a nossa intenção era mostrar o que o nosso ser imortal poderá sofrer após a morte do corpo, como contrapasso (reflexo) a cada ato que venhamos a praticar em vida.
A continuação deste poema, - O Purgatório e o Paraíso, narram a trajetória da alma até finalmente chegar aos campos de delícias, como recompensa pelo bem praticado em vida.
Desperte para uma leitura praseirosa, estimulante e educativa. Quando tiver oportunidade não deixe de ler algo que valha a pena.
Da nossa parte, ficamos conhecendo muitos personagens da antiguidade, graças as pesquisas que precisamos fazer para entender o poema e postar as informações com segurança. Foram oitenta e quatro dias levando a vocês a primeira parte do maior clássico da literatura universal.
As postagens se tornaram possíveis, graças ao grandioso e incansável tradutor e pesquisador Helder da Rocha que o transformou em prosa. Não fosse ele, A Divina Comédia continuaria sendo para nós, apenas um poema clásssico, cansativo e incompreensível, exceto para aqueles que se propôem a aprofundo seus estudos no tema.
É difícil explicar Dante Alighieri, mas, milhares de estudiosos se dedicam a essa incansável tarefa.
As imagens: Pinturas e gravuras, tornaram possível uma melhor compreensão do texto, e não está longe da verdade o texto que diz: "Uma imagem vale mais do que mil palavras".
24/08/2011
É...
ResponderExcluirJudeca é o nome do giro mais baixo do último círculo do inferno. É lá que reside Lúcifer, fazendo companhia àqueles que, em vida, traíram seus benfeitores.
Eles sofrem intensamente devido à proximidade de Lúcifer, e por estarem submersos totalmente no gelo do lago Cócito, conscientes, para a eternidade. O nome "Judeca" vem de Judas Iscariotes (34.5), o traidor de Jesus Cristo.
Segundo Este poema:
Lúcifer é o portador da luz, o anjo que ocupava cargo da mais alta confiança e que, rebelando-se, traiu a Deus e por isto foi expulso do céu, vindo a cair na terra.
Na sua queda, ele afundou pela superfície e só veio parar quando chegou ao centro da Terra, sobre a qual passou a reinar.
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E aqui nos despedimos esperando haver contribuído com algum conhecimento.
Vicente Almeida
Parabens Vicente pelo conhecimento e pelas apresentações tão bem detalhadas.
ResponderExcluirObrigada, Vicente, pela bela viagem feita nestes oitenta e quatro dias!
ResponderExcluirÉ...
ResponderExcluirArtemisia:
Para Dante, segundo seu poema, a sua passagem pelo inferno durou apenas um dia.
Vicente Almeida
Vicente Almeida,
ResponderExcluirSe eu não comentei nenhuma postagem da Divina Comédia, você deve ter imaginado que eu não as li. Logo, eu lhe enganei.
Pergunto: Qual seria a minha vala?
Confissão: Eu me encontrei em vários círculos e em várias valas. Vou deixar Lúcifer em dúvida.
É...
ResponderExcluirSávio:
Qual seria a sua vala?
Qualquer uma daquelas descritas nos Cantos, mas somente:
I - SE você tivesse vivido em Florença naquele tempo, cometido um dos pecados graves daqueles florentinos, ou fosse inimigo de Dante. Era batata, estaria destinado a uma das da valas infernais.
II - SE fosse amigo de Dante, ele também poderia ter te colocado em uma das valas para te homenagear, pois, Dante também homenageava seus amigos dando-lhes um lugarzinho no inferno. Foi o que percebi em alguns Cantos.
Quando você se encontrou em vários círculos e valas, lá estava eu te acompanhando.
E...
Não tive dúvidas da sua leitura aos Cantos. Sabia que você estava na espreita pois, em outras postagens, de vez em quando lia um comentário seu a respeito de "A Divina Comédia". Era sutil, mas demonstrava seu interesse.
Viu como eu estava atento? Você não me enganou!
Dacá um abraço!
Vicente Almeida
Obrigada, meu amigo Vicente: sua contribuíção foi de grande valor cultural, semtimental,e fraternal, pra mim; pois você impregnou de sentimentos bons, tudo que escrevestes dotos esses dias. Abraço carinhoso e fraterno. Maria de Fatima Bezerra Cordeiro.
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