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"Ultrapassa-te a ti mesmo a cada dia, a cada instante. Não por vaidade, mas para corresponderes à obrigação sagrada de contribuir sempre mais e sempre melhor, para a construção do Mundo. Mais importante que escutar as palavras é adivinhar as angústias, sondar o mistério, escutar o silêncio. Feliz de quem entende que é preciso mudar muito para ser sempre o mesmo".

Dom Helder Câmara


quinta-feira, 4 de agosto de 2011

Coisas nossas, por Zé Nilton

Memória dos velhos.

Este é Antonio Inácio da Silva, morador no Sítio Ramada, na Serra do Araripe. Homem honrado e prestigiado por todos os moradores daqueles rincões. Ele é caladão, mas simpático. Aqui e acolá diz umas “brincadeiras” para divertir a quem o escuta.

Morou, quando adolescente, na Comunidade do Caldeirão sob o Beato José Lourenço. Acompanhava o Beato em suas andanças pela Serra. Teria sido uma espécie de “secretário” do famoso Zé Lourenço.

Antonio Inácio mantém a tradição da Renovação do Sagrado Coração de Jesus, um culto resistente do catolicismo popular, chamado ainda de festa, onde o sagrado e o profano ocupam o mesmo espaço – a residência, o lar, síntese do patrimônio da família. O oficiante da Renovação é sempre alguém letrado, vizinho e amigo da família. Neste dia a casa se reveste de elementos festivos, e os fogos são o convite para todos participarem.

Como todos os velhos habitantes da Serra do Araripe, que vieram de longe, no tempo da pressão populacional sobre Juazeiro do Norte e da fome que grassava no Nordeste do polígono das secas, suas histórias são de um heroísmo sobre-humano, com façanhas incomuns na luta para se estabelecerem nas terras que, embora devolutas, sempre estiveram nas mãos de ricos agropecuaristas.

É verdade que os pequenos agricultores resistiram a toda a sorte de ameaças a expropriação, e lutaram para manterem-se como produtores livres, resultando dessas lutas não só a manutenção das comunidades baseadas nos limites das posses como também das antigas referências distintivas dos lugares. Num mundo sem “lei e nem grei”, a lógica do mais forte é usar a violência de todos os matizes para deserdar impiedosamente da terra o outro desprestigiado socialmente.

Algumas lutas narradas, hoje, vêm carregadas de todas as nuances de uma ação heróica. A rememoração de algumas resistências traz um imperativo sagrado na narrativa, misturando mito e realidade, mas nem por isto deixando de ser uma história.

Em minhas andanças pela Serra, um dia ouvi de seu Antonio Inácio, contado pausadamente, um fato inusitado por bater as portas de um milagre ou, se quiserem podem encaixá-lo no campo do realismo fantástico.

“...Eles deram pra gente se arranchar aqui. Nós tinha uma barraquinha ali, uma barroca mesmo. Aí se arranchemos lá e papai tocou umas roças. Aí depois que ele estava com esta roça, aí o dono [ das terras] botou ele pra correr. Pra nós ir embora, pra nós sair. [...] Papai disse: - não saio, não; só quando eu colher a roça. Aí ele disse: - Se não sair nós tocamos fogo, vou tocar fogo no mato... Aí ele disse: - pode tirar os troços de dentro da casa, senão eu toco fogo. Aí papai disse: - eu não tiro um lenço de dentro de casa... Aí ele veio e tocou fogo no mato ao meio dia em ponto. O fogo açoitou de cabeça afora em procura da barraca... Mamãe disse: - vamos sair de dentro de casa senão vamos morrer todos queimados. Papai disse: - daqui não tiro um lenço, e daqui ninguém sai. Aí ele entrou pra dentro do mato e o fogo veio e veio, quando chegou onde ele estava, veio um vento e açoitou o fogo todinho pra cá, pra trás. Ai ficou a lista (de carvão) no chão de fora a fora. Aí ele voltou e veio ver se a gente tinha se queimado. Ele chegou e nós estava todos dentro da barraca e o mato ao redor, que não tinha queimado. Aí nessa hora chegou o irmão do homem e disse: - olhe, com este velho aqui ninguém bole.”

Fiquei olhando para aquele senhor sem saber o que esboçar. Nessas horas, pensei comigo, é melhor a gente citar a famosa frase de Miguel de Cervantes: “Yo no creo en brujas, pero que las hay, las hay.”

E para quem gosta, hoje no programa Compositores do Brasil, na Rádio Educadora do Cariri (www.radioeducadora1020.com.br) , o famoso Canhoto da Paraíba, o homem que reinventou a música.

Bom fim de semana.

4 comentários:

  1. Prezado Ze Nilton

    Um belo texto, especialmente porque nestes dias, estão a negar o sacrificio a que foi levado todo o pessoal do Beato.

    Abraços.

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  2. É...

    Zé Nilton:

    Nã seria o caso de obter do Sr. Antonio Inácio alguma informação sobre o massacre no caldeirão.

    Estão tentando desmistificar e ele poderia dar um adjutorozinho.

    Abraços lameirenses do

    Vicente Almeida

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  3. Agradeço ao Morais pela leitura.
    Vicente,´ele é meu vizinho lá na Serra. Já me falou disto, e repete o que a história já registrou. Houve massacre e acima de tudo intolerância da sociedade da época.
    Quem se dispuser ir a contrapelo que o faça, mas talvez se enveredem pela farsa já que a história aconteceu como tragédia.

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  4. Zé Nilton,

    Ainda convivemos com pessoas que viveram fatos históricos importantes, mas que os seus depoimentos não informam o que outros desejam ouvir. Que pena...

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