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"Ultrapassa-te a ti mesmo a cada dia, a cada instante. Não por vaidade, mas para corresponderes à obrigação sagrada de contribuir sempre mais e sempre melhor, para a construção do Mundo. Mais importante que escutar as palavras é adivinhar as angústias, sondar o mistério, escutar o silêncio. Feliz de quem entende que é preciso mudar muito para ser sempre o mesmo".

Dom Helder Câmara


quarta-feira, 13 de abril de 2011

NEGO DAGÔ - Por Xico Bizerra.

Inspirado numa história de Mané Brito

Dagô tinha quase dois metros de comprimento, guarda-roupa compatível para acomodar tanta tabaquice. Foi por isso, pelo abestalhamento além da conta, que a Nega Sula, bonita e reboculosa, se desengraçou daquele cabra roliço e mal-acabado. Dinho, não: o que tinha de amarelice e pequenez tinha, inversamente proporcional, de malandragem: um metro e sessenta da mais pura saliência e safadeza.

Dagô era como alguns poucos chamavam Dagoberto, filho do chapeado Rigoberto com a costureira da cidade, Dona Zuleide. Dinho era Raimundo, nascido e criado na Fazenda Maculelê, do Coronel Zeca Florêncio. Não me perguntem quem era seu pai que serei forçado a dizer que talvez fosse o próprio Coronel, como asseguram as manicures e outras más línguas das redondezas. Mas certeza, que é bom, ninguém tinha. Muito menos ele, embora tivesse uma parecença muito parecida com o tal do Coronel. Sabe-se, apenas, que o Coronel nutria uma certa simpatia pela mãe de Dinho, moradora de sua fazenda. Mas isso não vai ao caso.

Na quermesse do mês de maio, depois de uma misturada de vermute com cachaça, Dinho criou coragem e resolveu conquistar Sula que, benditas sejam as coincidências, também estava muitíssimo interessada naquele cabra pequeno. Daí para o escondidinho atrás da Igreja, bem debaixo do pé de juazeiro, foi um minuto que não demorou mais que um segundo. Bem mais que de repente, estava lá o casal num abufelamento tão da bixiga lixa que não dava pra distinguir os possuídos de um e de outro. Dinho com sua amarelice e safadeza; Sula com todas as suas prendas: peitos grandes, beiços carnudos e morenice provocante. O amorçegamento era tão grande, saliências e reentrâncias tão próximas, que sequer perceberam o estrupício que estava por acontecer. Dagô, capiongo e injuriado pelo fora que levara de Sula, era um poço de macambuzice. Vivia a perseguir-lhe por todos os caminhos, como que a dizer ‘não é minha, não será de ninguém’. Chegara a estar no mesmo local com ela, numa noite de um fevereiro beirando as chuvas de março, mas parece não ter sabido aproveitar as delícias do lugar, da nega e da ocasião. Agora, ali, o instante oportuno para resgatar a honra perdida com os nãos daquela Sula tão banqueira e cheia de faceirice.

Raimundim, cabra safado, seu fí d’uma égua, solta essa nega que agora ocê vai se abufelar é mais eu. Agora ocê vai ver o que é quiprocó, o que é fuzuê, e essa nega vai aprender a respeitar os sentimento que eu sinto por ela. É hoje que vai voar caco de cabra safado pra tudo que é lado e esse fí de quenga vai ver com quantos tabefe se faz um resto de home.

Raimundinho, no susto, ainda cogitou em dar um catiripapo em Dagô, se escafeder no oco do mundo, mas viu que não era um bom negócio medir forças com um Golias, sendo ele apenas aquele pequeno Davi. Um cangapé só de Dagoberto podia desmontar todo seu esqueleto, esquartejar sua alma e ele preferia que ela chegasse inteira no céu, sem escoriações. Assim, aos poucos, foi se desapregando da nega e a nega dele, ganhando tempo, aprumando as idéias e, não se sabe como nem de onde, ainda arranjou coragem para falar grosso com o rival:

Óia aqui, Dagô, deixe de ser maldoso. Nóis num tava fazendo nada demais não, visse? Nóis tava só proseando ...

O tratamento indevidamente íntimo – pouco o tratavam por Dagô, ajuntado com o descaramento de Raimundinho, deixou Dagoberto ainda mais furioso. O cabra grande fungou, botou “fogo” pelas ventas, ciscou metro e meio de terra mas, no ferver da ira, perdeu Raimundinho. O cabrinha, tão pequeno quanto ligeiro, escapuliu numa carreira tão desabalada que levou consigo, no bolso da camisa, uns dois quilos de areia, resultado da poeira levantada. Despinguelou na estrada do mundo. Dizem, à boca pequena, que ele hoje é ‘seu’ Raimundo, dirige um táxi no Bexiga, em São Paulo, presente de uma coroa italiana que não resistiu aos seus encantos de cabra pequeno e enxerido.

Quanto a Dagoberto, com Raimundinho longe e, literalmente, sem concorrente à altura – 2 metros de altura é altura pra homem nenhum botar defeito, conseguiu casar com Dona Sulamita, com uma condição por ela imposta:

Nosso primeiro filhinho vai se chamar Raimundo, viu meu “Dagosinho”?

Dagoberto não entendeu muito bem essa exigência da noiva mas não relutou um minuto sequer em aceitá-la. E era besta o Dagô? Numa quarta-feira de cinzas, nasceu Raimundinho: amarelinho e mirrado, saliente, com uma carinha de safado que só vendo... Coronel Zeca Florêncio foi o primeiro a visitá-lo, serelepe e fagueiro. Parecia um avô.

Um comentário:

  1. Prezado Xico.

    Parabens.

    Como é prazeroso lê a verve da gente dos pés de serra e dos bravos brejos do sertão caririense. Aguardei Dagô cortar de peixeira a saia de Sulamita quando esta estivesse dançando com Raimundo. Mas, não foi necessario, Raimundo era medrosa e deixou que os dois se entendessem. Dagô é que não compreendeu bem porque o bichim deveria se chamar Raimundo. Muito Bom mesmo.

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