Páginas


"Ultrapassa-te a ti mesmo a cada dia, a cada instante. Não por vaidade, mas para corresponderes à obrigação sagrada de contribuir sempre mais e sempre melhor, para a construção do Mundo. Mais importante que escutar as palavras é adivinhar as angústias, sondar o mistério, escutar o silêncio. Feliz de quem entende que é preciso mudar muito para ser sempre o mesmo".

Dom Helder Câmara


sexta-feira, 15 de junho de 2018

V - ENTREVISTA DO TENENTE JOÃO BEZERRA AO GLOBO - POR “O GLOBO” – 26/06/1957.

COM A NOTA DE LAMPIÃO NO BOLSO.
O coronel João Bezerra toma o quarto cafezinho da entrevista, que foi escrita entre 19h10m e 23h20m, e descreve:
Assim foi que o notório coiteiro Pedro de Cândida, que viera fazer feira para o próprio grupo, foi quem mais me olhou e mais riu, uma vez que se achava com a nota da despesa de Lampião no bolso e Cr$ 2 500,00 em espécie, quantia essa pertencente ao bandido. Depois de lido o despacho, mandei tocar “reunir”, embarquei a tropa num caminhão e propalei que me dirigia a Moxotó, onde consoante o telegrama, se achavam os cangaceiros.

A VOLTA INESPERADA (Para os Coiteiros)
Dezenove anos passados, o coronel João Bezerra parece feliz com sua estratégia. Sorri com certo entono ao referi-la:
Chegando a Pedra, estacionei, aguardando a noite para voltar, o que fiz, reforçando a tropa. Às 18h30m, eu estava em Piranhas, onde, evidentemente, ninguém me esperava. Os meus agentes tinham notícias mais frescas, declarando-me que o Pedro de Cândida há três dias havia passado na beira da roça de um cidadão, nas caatingas, com duas bandas de bode nas costas, rumo à Serra de São Francisco, onde eu suspeitava achar-se o grupo.


PRENDER PEDRO DE CÂNDIDA, EIS A QUESTÃO.
Inferi logo que, detendo Pedro de Cândida, estaria tudo resolvido, o que logrei às 2 horas da madrugada. Com três canoas pequenas, atreladas umas às outras, por não dispor de canoa grande, e sob os maiores perigos de naufrágio, cheguei ao local de nome Remanso, distante do povoado de Entremontes, onde morava o coiteiro. Mandei bater na porta e fazer o sinal de tropa, dizendo-lhe que eu queria falar-lhe. Pedro de Cândida, ao ver o miliciano, apavorou-se, conseguindo ludibriá-lo. Deixou de comparecer, pretextando que um boiadeiro da Bahia poderia descobrir que ele estava tendo entendimento com a milícia estadual e isto lhe seria fatal.

SINAL DE CANGACEIRO ABRE A PORTA DE COITEIRO.
Indignei-me com a recusa e determinei ao soldado insistisse, trazendo Pedro de Cândida de qualquer maneira, ainda mesmo disparando-lhe o parabélum, o que foi cumprido dentro de dez minutos, comparecendo Pedro de Cândida à minha presença. O soldado usou de estratégia, fazendo o sinal de cangaceiro, o que levou Pedro de Cândido a abrir a porta da frente, quando já se aprestava a fugir pela de trás. Ao ver, então, o soldado, exclamou: “Você voltou para me matar?” Ao que o praça retrucou: “O tenente me ordenou que, se não pudesse trazê-lo, eu o matasse, aqui mesmo”. Pedro de Cândida resolveu comparecer.

BEM PERTO DOS MALFEITORES.
De posse desse achado, peguei Pedro de Cândida na abertura da camisa e, com pequeno gesto com o joelho, o coiteiro caiu ao chão. Fiz-lhe, na oportunidade, um susto gostoso, puxando o punhal e colocando-o abaixo de sua costela mindinha. Perguntei-lhe se estava disposto a mostrar os assaltantes. Ele concordou, contando-me, ainda, a mangação que fizera, supondo que eu estava, mesmo, em Moxotó. E, sem mais preâmbulos, atravessamos o rio na mesma embarcação, sem rumor, pois estávamos bem perto do grupo.

UM “INTERMEZZO” SENTIMENTAL.
Quando saltamos do barco, Pedro de Cândida me requereu, em prantos, que eu assentisse em que ele fosse tomar a benção à sua mão, cuja residência era ali próximo, como apontou com o dedo. Consenti. O aspirante Ferreira e eu o acompanhamos de perto, enquanto as minhas forças gozavam uma trégua. Eram 3 horas da madrugada e chovia torrencialmente. Ao passar por debaixo de duas quixabeiras frondosas, nas proximidades do domicílio, Pedro de Cândida parou repentinamente e assinalou: “Seu tenente, o senhor deveria ter trazido mais soldados. Cangaceiro é a peste! Talvez a minha casa esteja cheinha deles”. Revoltei-me: “Por que não me advertiu antes, miserável, mas só agora?”

UM ALVO BRANCO SE RECORTA NO NEGRUME DA NOITE.
A expectativa dos que ouvem as palavras do coronel João Bezerra é inocultável. Ele, porém, não denota qualquer exaltação:
Nesse momento, ordenei ao aspirante que destravasse a metralhadora e se colocasse atrás da residência. Quanto a mim, coloquei o pente de cinquenta tiros na minha metralhadora possante e recomendei a Pedro de Cândida que batesse na porta, fazendo o sinal de cangaceiro, e chamasse o irmão. O irmão respondeu logo: “Pedro?” E este: “Venha cá!” Imediatamente, abriu-se a porta e o irmão de Pedro de Cândida saiu com uma camisa muito branca, que se recortava bem na escuridão. Olhou bem pertinho da minha cara e espantou-se: “Uai! Já está aqui?” Ao que Pedro de Cândido aconselhou: “Meu irmão, conte logo tudo, que nós vamos morrer por causa dos cangaceiros e eu já sofri o diabo”.

Um comentário:

  1. E os coiteiros entre a maldade de uns e a perseguição dos outros. Muito sofrimento e dúvidas.

    ResponderExcluir