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"Ultrapassa-te a ti mesmo a cada dia, a cada instante. Não por vaidade, mas para corresponderes à obrigação sagrada de contribuir sempre mais e sempre melhor, para a construção do Mundo. Mais importante que escutar as palavras é adivinhar as angústias, sondar o mistério, escutar o silêncio. Feliz de quem entende que é preciso mudar muito para ser sempre o mesmo".

Dom Helder Câmara


segunda-feira, 18 de junho de 2018

VII - ENTREVISTA DO TENENTE JOÃO BEZERRA AO GLOBO - POR “O GLOBO” – 26/06/1957.



O GRITO DE VITÓRIA: “O CEGO MORREU!”
O chão e as macambiras cobriam-se de sangue. Luiz Pedro, cabra valente pra danar, vinha ao nosso encontro, sem nos ver. Fui, de dentro do riacho, enquadrando-o na mira da metralhadora, até 10 metros. Quando me preparava para matá-lo, vi, com tristeza, que um soldado atirou primeiro. Com mais vinte metros, vimos quatro cangaceiros caídos. Junto a eles, um soldado gritava: “O cego morreu!” Eu respondi que o cego (Lampião) não morreria assim. E ele, convicto: “Se este não for Lampião, quero ser cabra da peste, pois eu fui coiteiro dele durante dois anos”. E eu, ainda desconfiado: “Verifiquei se o olho direito dele é cego”. Ao que ratificou o praça: “É cego, sim, tenente”. Mandei trazer o cangaceiro, no caso Lampião, mas o praça trouxe a cabeça. Alguns cabras, entrementes, conseguiam escafeder-se, enquanto as cabeças de seus comparsas rolavam pelo barro.

MEDIDA ACERTADA
O coronel João Bezerra observa que a lembrança do degolamento de Lampião e de seus sequazes ainda constitui um impacto. Elucida, por isso:
O degolamento se enquadrou perfeitamente num processo antigo. Demais disso, não poderíamos trazer todas as cabeças. Quando os meus subordinados cortaram as cabeças, não protestei também por um outro motivo: uma falange de dedos amputada não modificaria uma fisionomia. Determinei fosse feito o reconhecimento dos cadáveres, mandando respeitar os mortos.
E repisou o entrevistado:
O degolamento foi uma medida acertada. Se não tivesse ocorrido, muita gente, até hoje, não acreditaria na morte de Lampião.

VERSÕES QUE DIVERGEM
O nosso entrevistado vai além.
Um dos ex-combatentes da época, coronel Manuel Neto, da Polícia de Pernambuco, e ex-prefeito de Irajá, escreveu, levantando dúvidas quanto às reais circunstâncias que rodearam o fim de Lampião. Forçou, com isto, os meus colegas das Alagoas a censurá-lo e levou-me igualmente, a lhe escrever uma carta, que dizia, a certa altura, mais ou menos o seguinte: “Deixe, meu bom colega, que os paisanos venham em cima de nós, militares, com seu despeito, sua inveja, não um velho militar, nas suas condições, que, muitas vezes, imitando-me ou tentando imitar-me, se amparou no seu mosquetão, aguardando o pronunciamento da Justiça. Você sabe bem, está bem lembrado, de quando lhe telegrafei, chamando-o, e que você, em lugar de comparecer, para me ajudar, mandou o sargento Davi Surubeba(que ainda hoje é vivo e está lembrado), que chegou retardado, encontrando-me nas mãos de dois médicos, que me pensavam dos ferimentos recebidos no combate meia hora antes. E Davi Surubebae o sargento Odilon Flores, de saudosa memória, pegaram aas cabeças dos cangaceiros, tendo o primeiro, ao erguer a de Lampião, asseverado, chorando: “Queria que fosse eu que tivesse morto Lampião.Mas foi o meu amigo, tenente João Bezerra, quem o matou”.

MEMÓRIAS EM TERCEIRA EDIÇÃO
Perguntamos ao coronel João Bezerra sobre Volta Seca, atualmente no Rio de Janeiro, onde até se iniciou como cantor. A resposta é áspera: “É um cachorro!” Narra-nos, então, um episódio, impublicável, marcado pela maior brutalidade, cujo protagonista principal foi aquele ex-integrante do grupo de Lampião. E arremata o entrevistado, após acentuar que a fita “O Cangaceiro”, de Lima Barreto, foi uma pantomima, sem guardar qualquer relação com a verdade histórica, e que pretende figurar, em breve, como ator, num filme sobre a vida e a morte de Lampião, produzido pelo seu amigo, deputado, Tenório Cavalcanti.
Dessa forma é que vou publicar a terceira edição do livro sob o título “Como dei cabo de Lampião”, com capítulos interessantes para o momento, inclusive o desmentido a algumas notas escritas irrefletidamente por pessoas inescrupulosas.
Terminara a entrevista, quatro horas e dez minutos após se haver iniciado. Conduzimos o entrevistado até à porta do hotel. “Não lhe ficou, portanto, qualquer remorso da liquidação de Lampião e seu bando?” – reinquirimos. E o coronel João Bezerra, firme:
Nenhum remorso. O degolamento enquadrou-se, como já disse, num processo histórico. Depois, era mais cômodo trazer as cabeças que os corpos, dada a distância em que nos encontrávamos. Trazer os corpos seria impraticável.
O coronel João Bezerra pede que lhe enviemos exemplares do número de O GLOBO em que foi publicada a entrevista. Quando apertava a mão do repórter, um hóspede do hotel, identificando-o, comentou com o companheiro:
Olhe o degolador de Lampião...
E o coronel João Bezerra, já ganhando a calçada:
Aí começa a lenda. A verdade termina no que lhe contei. Foram feitas as despedidas e o coronel João Bezerra afastou-se, tranquilo, como se estivesse na santa paz dos céus, sem que lhe angustiassem o espírito aquelas cabeças que rolaram, um dia, pelo chão calcinado dos sertões, há quase duas décadas. Certamente os espectros não transpõem a porteira da sua fazenda, onde se erguem as sombras dos cafezais e dos canaviais e onde o gado muge as suas mágoas – as únicas existentes na queda fazenda Aquidabã.

Um comentário:

  1. Terminamos a entrevista. Conhecemos a versão por um lado. O outro lado não há quem possa contar. E, toda historia que só se conhece um lado é mal contada.

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